A África nunca antes vista

17/out

Começa no Instituto Ling, Bairro Três Figueiras, Porto Alehre, RS, o curso Pensamento Africano Moderno. Nele, a África será vista a partir da perspectiva de importantes escritores e pensadores africanos como Cheikh Anta Diop, Frantz Fanon, Valentin-Yves Mudimbe, e muitos outros. Ao longo das aulas, haverá a oportunidade de examinar suas obras, compreender suas ideias e conhecer as complexidades do pensamento africano. Quem ministra os encontros é o professor e pesquisador José Rivair Macedo, especialista no assunto.   O domínio europeu sobre o continente africano, especialmente entre 1880-1960, produziu alterações estruturais significativas, impondo aos povos e sociedades africanas padrões políticos e socioculturais identificados com a modernidade ocidental. No decorrer do século XX, durante os períodos da colonização, descolonização e criação das nações africanas modernas, ativistas, intelectuais e artistas desenvolveram ideias e propostas políticas para expressar a condição de subalternidade de seus coetâneos no mundo e, com isso, o desejo de transformá-la. Desse contexto surgem questões-chave para pensarmos o processo de descolonização e a oportunidade de uma reavaliação crítica das influências e legados culturais deixados pelos colonizadores. O objetivo do curso é ampliar as perspectivas recorrentes em torno do pensamento africano contemporâneo, examinando obras e autores como Cheikh Anta Diop, Frantz Fanon e Valentin-Yves Mudimbe, entre outros.

Sobre o ministrante:

José Rivair Macedo é doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH-USP, com estágio de pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa (2001) e Universidade de Lisboa (2011). É professor no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, na área de História da África e dos Afro-Brasileiros, e no Programa de Pós-Graduação em História da mesma instituição. Pesquisador, coordena a Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados – ILEA-UFRGS e integra o Núcleo de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – NEABI-UFRGS. É autor, entre outros, dos livros História da África (Editora Contexto, 2013); O pensamento africano no século XX (Outras Expressões, 2016); Dicionário de História da África (Edições Autêntica, 2017; 2021) e Antigas Sociedades da África Negra (Contexto, 2021).

Programa do curso:

18.10 – Aula 1: 1900 a 1950 – Introdução ao pensamento africano moderno e pensamento social africano: tendências e movimentos da “personalidade africana”, “pan-africanismo” e “negritude” (Blyden, Du Bois, Garvey, Césaire, Senghor)

25.10 – Aula 2: 1950 a 1980 – Contextualização e estudo de obras e autores essenciais vinculados aos movimentos anti-coloniais e às lutas de libertação nacional na África ( Diop, Fanon, Nkrumah, Cabral)

1.11 – Aula 3: 1980 a 2020 – Pensamento africano pós-colonial (Mudimbe, Hountondji, Mbembe, Amina Mama, Oyèwúmí)

Arte Brasileira na Casa Fiat

11/out

Esta é a primeira vez que uma mostra de tamanha robustez é montada em Belo Horizonte, MG, fora do Museu de Arte da Pampulha (MAP) – algumas obras, inclusive, jamais foram vistas que não na icônica construção encravada às margens da Lagoa da Pampulha, pensada originalmente para abrigar um cassino aberto ao público. A exposição “Arte Brasileira” está organizada em seis núcleos inter-relacionados: Conjunto Moderno da Pampulha, Os Modernos, Pampulha Espiralar: Um Lar, Um Altar, Nossos Parentes: Água, Terra, Fogo e Ar, O Menino Que Vê o Presépio e Novos Bustos. Obras de Cândido Portinari, Guignard, Di Cavalcanti, Burle Marx, Mary Vieira, Oswaldo Goeldi, Antônio Poteiro, Yara Tupynambá, Cildo Meireles, Jorge dos Anjos, Vik Muniz, Nydia Negromonte, Froiid, Wilma Martins, José Bento, Eustáquio Neves e Luana Vitra, entre outros, são artistas de diferentes gerações e movimentos que agora se reúnem na exposição “Arte Brasileira: A Coleção do MAP na Casa Fiat de Cultura”, inaugurada em Belo Horizonte.

No terceiro e extenso andar da Casa Fiat de Cultura, cerca de 200 obras, entre gravuras, pinturas, fotografias, esculturas e cerâmicas, nunca antes expostas em conjunto, fazem um importante passeio pela produção artística brasileira dos séculos XX e XXI, ressaltando os principais deslocamentos da arte contemporânea do país. Ali, estão nomes que contribuíram para elevar não só o pensamento estético, mas também uma criação que lançou olhares inovadores e utópicos sobre o Brasil, a partir de uma elaboração da releitura de uma identidade nacional proposta pelo modernismo.

As obras expostas na Casa Fiat evidenciam, também, a característica vanguardista do MAP, como sublinha o curador do Museu de Arte do Rio (MAR), Marcelo Campos, que assina a curadoria ao lado de Priscila Freire, ex-diretora do museu, inaugurado em 1957: “Na arte brasileira, a palavra vanguarda foi inaugurada no modernismo e acompanha essa coleção do MAP, que sempre se mostrou com muita coragem ao constituir seu múltiplo acervo”.

Priscila Freire, que esteve à frente do MAP durante 14 anos, diz que pode contar um pouco dessa história por meio da exposição. “Indiquei obras que considero interessantes da coleção de um museu que passou pelo moderno, pós-moderno e contemporâneo sendo sempre contemporâneo”, comenta.

Fruto da parceria entre a Casa Fiat de Cultura e prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Secretaria Municipal de Cultura e Fundação Municipal de Cultura, “Arte Brasileira: A Coleção do MAP na Casa Fiat de Cultura” fica aberta ao público até fevereiro do ano que vem e é parte das celebrações dos 80 anos do Conjunto Moderno da Pampulha, eleito Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco.

Para a secretária de Cultura de Belo Horizonte, Eliane Parreiras, “a exposição é um marco para a história do MAP, abre portas para pesquisas futuras e olhares que até então não tinham sido feitos sobre o acervo e a instituiçao”. Por sua vez, o presidente da Casa Fiat, Massimo Cavallo enfatiza o aspecto ousado, grandioso e inovador da mostra, “que desvela novos ângulos que habitam esse Patrimônio Cultural da Humanidade, nutrindo vínculos de pertencimento e identidades”.

Vocação contemporânea

“Arte Brasileira” dialoga com as indagações que permeiam o que há de mais atual nos debates sociais e com a literatura de Conceição Evaristo, Ailton Krenak e Leda Maria Martins, homenageados e retratados no núcleo Novos Bustos. Muito antes de termos como decolonial ou pós-colonial se popularizarem no nosso vocabulário, as obras que serão vistas na mostra já traziam questionamentos que hoje encontram o pensamento contemporâneo. Quando Marcelo Campos e Priscila Freire propuseram que a exposição revelasse tal traço, perceberam que a coleção do MAP respondia a esse anseio e unia o que é considerado erudito, popular e contemporâneo.

“Só um acervo de vanguarda poderia nos dar insumos e elementos para constituir uma exposição com quantidade de arte popular que temos, com artistas negros e negras e também com muitas mulheres fundamentais para a arte brasileira. A exposição explicita isso, mas também busca renovar a leitura. Muitas obras aqui pertencem ao acervo, mas nunca tinham sido expostas. Isso é fundamental”, explica Campos.

Os quadros “Os acrobatas” (1958), de Candido Portinari, e “Espaço (da série Luz Negra)”, de Jorge dos Anjos, são dois destaques da exposição. “No Portinari é bonito porque a gente vê um artista modernista observando a cultura popular. Uma das utopias modernistas foi pensar uma sociedade mais justa, igualitária, com os ideais humanistas presentes. A grandeza de Portinari foi alertar para um Brasil que tinha na população suas riquezas culturais”, ressalta o curador.

Sobre Jorge dos Anjos, que tem outras duas obras expostas na Casa Fiat, Marcelo Campos salienta que o ouro-pretano ampliou tradições e “é um artista negro que olha para o seu tempo e, por outro lado, não esquece as discussões ancestrais”.

Entre as obras inéditas, vêm à tona o conjunto de pinturas populares e o presépio pertencente ao núcleo O Menino Que Vê o Presépio, montado em uma das pontas do terceiro andar da Casa Fiat. Exibido pela primeira vez ao público, a obra, inspirada em um conto de Conceição Evaristo, tem cerca de 300 peças e é composta por esculturas em cerâmicas originárias do Vale do Jequitinhonha, com autoria de Cléria Eneida Ferraz Santos e Mira Botelho do Vale.

“Esse é outro grande destaque, vamos colocar isso dentro de uma exposição que, em tese, seria de arte moderna e contemporânea. Esse gesto reforça a ideia de vanguarda do acervo do MAP”, afirma Marcelo Campos. Outra novidade fica por conta do restauro de duas obras: “Estandartes de Minas” (1974), de Yara Tupynambá, e “Tempos Modernos” (1961), de Di Cavalcanti, que se juntarão à mostra.

“Arte Brasileira: A Coleção do MAP na Casa Fiat de Cultura” joga luz na potência cromática da arte brasileira e faz as pazes com a diversidade e a força das cores, tão rechaçadas e inferiorizadas por uma leitura antiquada e elitista. Com a mostra, atual e tropicalista, o curador diz que esse trauma pode ser superado: “A cor é uma conquista, horizontaliza a arte”.

Programação paralela

No dia 29 de outubro, às 11h, o Encontros com o Patrimônio convida a diretora de museus da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, Janaina Melo, para o bate-papo “Museu de Arte da Pampulha (MAP): Um Museu e Suas Histórias”. O evento é virtual e gratuito, com inscrição pela Sympla. Já no dia 07 de novembro, às 19h30, a Casa Fiat de Cultura realiza um bate-papo presencial com os curadores Marcelo Campos e Priscila Freire.

A exposição “Arte Brasileira: A Coleção do MAP na Casa Fiat de Cultura” fica aberta ao público, na Casa Fiat de Cultura (Praça da Liberdade, 10 – Funcionários), até 04 de fevereiro de 2024.

Os encantados da Amazônia

Obra de Anderson Pereira integra por meio dos objetos em forma de altar em conexão com a dimensão espiritual o projeto premiado por meio do “Edital Prêmio FCP de Incentivo à Arte e à Cultura – 2023, da Fundação Cultural do Estado do Pará (FCP). Conta com o apoio do Centro Cultural João Fona, da Prefeitura de Santarém. Na cena, terá um dos quadros pintados pelo artista, que desponta como revelação paraense no seguimento de artes visuais, e ainda vários elementos representativos do cotidiano das pessoas.

“A utilização de cores vibrantes e simbologia específica vai enriquecer ainda mais a narrativa da obra, proporcionando uma imersão na diversidade e profundidade dessas tradições. Quem for ver a instalação vai poder observar as representações artísticas dos encantados em harmonia com a fauna e flora amazônicas, destacando a fragilidade desses ecossistemas diante das mudanças climáticas”, disse.

Encantados

Os encantados da Amazônia são seres míticos e espirituais, frequentemente presentes nas tradições folclóricas e culturais das comunidades amazônicas. Essas entidades são consideradas guardiãs da floresta e seus habitantes, representando uma conexão profunda entre a natureza e as crenças locais. Os encantados podem assumir diversas formas, muitas vezes associadas a animais da região, como botos, cobras, curupiras ou outros seres da floresta. A ligação entre as crenças dos encantados da Amazônia e as concepções afro religiosas, como o Candomblé ou a Umbanda, é muitas vezes uma expressão da riqueza da diversidade cultural e espiritual no Brasil, especialmente nas regiões amazônicas. De acordo com o produtor executivo, Mayco Chaves, que ajudou na pesquisa para o projeto.

“Eles são vistos como seres benevolentes, mas também demandam respeito e reverência. As lendas dos encantados são passadas de geração em geração, contribuindo para a rica tapeçaria cultural da Amazônia”, afirma.

Anderson Pereira destaca que o tema escolhido fala das espiritualidades na região, nos quais elementos das tradições indígenas da Amazônia e das práticas afro-brasileiras se entrelaçam. “Por exemplo, algumas entidades cultuadas nas religiões afro-brasileiras podem ser associadas ou adaptadas para incorporar características dos encantados da Amazônia. Essas relações são formas que enriquecem as identidades culturais amazônicas”, disse.

Coleção Andrea e José Olympio Pereira

10/out

Um recorte surpreendente da coleção Andrea e José Olympio Pereira, uma das mais importantes do mundo, tomará o espaço expositivo do Palácio Anchieta a partir de 17 de outubro. A mostra, com o patrocínio do Instituto Cultural Vale, traz obras que têm a natureza como potência criativa, em diálogo com o registro dos povos originários, afrodescendentes e da dita tradição popular. Sob o arguto olhar da curadora Vanda Klabin, a exposição “De onde surgem os sonhos | Coleção Andrea e José Olympio Pereira” oferece um excelente momento de reflexão sobre os rumos da arte que trabalha as raízes mais fundas da ancestralidade brasileira. Mostra inédita de arte contemporânea, da coleção Andrea e José Olympio Pereira, no Palácio Anchieta, em Vitória (ES). Com patrocínio do Instituto Cultural Vale, a exposição é a terceira lançada este ano pelo Museu Vale, como parte de suas ações extramuros, e marca os 25 anos de trajetória da instituição.

“De onde surgem os sonhos” tem título inspirado na obra de mesmo nome do artista macuxi Jaider Esbell, ativista dos direitos indígenas, falecido em dezembro de 2021. A mostra conta com 72 obras, de 50 artistas, da que é considerada uma das maiores coleções de arte contemporânea do Brasil e está entre as 200 maiores do mundo. Nesta seleção dividida em sete salas, obras de artistas como Adriana Varejão, Cildo Meirelles, Ana Maria Maiolino, Cláudia Andujar, Franz Krajcberg, Waltercio Caldas e José Damasceno, por exemplo, dialogam com os trabalhos dos artistas mais recentes.

Sobre a Coleção Andrea e José Olympio Pereira

Famosa no mundo inteiro, a coleção de Andrea e José Olympio Pereira tem foco na produção brasileira a partir dos anos 1940 até o momento atual e reúne algo em torno de 2,5 mil obras. Em 2018, o casal inaugurou o Galpão da Lapa, antigo armazém de café do século XIX, e o converteu em um espaço expositivo que recebe, a cada dois anos, um curador diferente para criar novas exposições a partir das obras de sua coleção. “Quando nos interessamos por um artista, gostamos de ter profundidade”, explica Andrea. “Conseguimos entender melhor o artista desta forma, pois um único trabalho não mostra tudo. É como se fosse um livro cuja história seria impossível de ser compreendida só com uma página”, compara.

De 17 de outubro de 2023 a 28 de janeiro de 2024.

As resinas de Dudi Maia Rosa

27/set

O Instituto Ling, Três Figueiras, Porto Alegre, RS, inaugura no dia 05 de outubro a mostra individual “Desde A Tona”, de Dudi Maia Rosa, apresentando obras inéditas do artista paulistano. Sob a curadoria de João Bandeira, a exposição apresenta 23 obras datadas de 2007 a 2023, sendo a grande maioria resinas, que são superfícies cromáticas feitas em resina de poliéster e fibra de vidro – uma marca de seu trabalho, além de algumas aquarelas, trabalhos em relevo com diferentes materiais e esculturas em latão. O Instituto Ling ainda convida para a conversa de abertura, com participação de Dudi Maia Rosa e João Bandeira, curador da mostra. O bate-papo poderá ser acompanhado presencialmente, com entrada franca, no auditório do Instituto Ling. Na ocasião, será lançado o catálogo com distribuição gratuita a todos os participantes.

A mostra fica em cartaz até 29 de dezembro.

Desde A Tona  – Dudi Maia Rosa

O trabalho de Dudi Maia Rosa tem um marco, descrito em suas declarações e comentado por vários críticos, que é quase uma fábula de origem – e sabe-se que fabulação não se opõe necessariamente a verdade. O relato diz que, a certa altura, houve uma espécie de revelação, quando ele inventou um objeto artístico basicamente feito de resina de poliéster, fibra de vidro e pigmentos, que tende ao tridimensional. Porém umbilicalmente ligado à longa tradição formal e simbólica da pintura, e no qual a distinção entre imagem e suporte se dissolveu. Com o apelido de “resina”, esses trabalhos têm sido um laboratório da produção de Dudi – embora não exclusivamente -, e seu aspecto geral passou por várias gerações, muitas vezes remetendo ao “quadro”, mas de um modo todo próprio. Feito pelo artista em um molde deitado, uma das particularidades do objeto “resina” é que o que estava no fundo do molde será a superfície, quando ele estiver pronto para ser levantado na vertical e se apresentar a nós. É como se o que vemos nessas obras se originasse do movimento de fazer algo submerso vir à tona. Quase todas as “resinas” desta exposição são trabalhos recentes ou nunca mostrados, mas relacionados a uma linhagem há tempos consolidada na produção de Dudi, que soma a expansão generosa da cor ao afloramento, afetivamente irônico, de referências vindas da história da arte. Por exemplo, a pincelada, o grafismo, a listra, o jogo positivo-negativo, a iconografia simbólica (como a cobra-ourobouros), a apropriação de imagens (lá estão duas musas do cinema, Monica Vitti e Odete Lara), e até o quadro ele mesmo e sua moldura – embebida em humor, a materialidade do objeto de arte é, e não é, a própria representação. Uma certa rusticidade se destaca nessa nova safra: no aspecto fragmentário de grandes chapas de cor, na aspereza franca de algumas superfícies, ou, ainda, no desnudamento da própria substância que dá corpo a essas obras. Rusticidade e fragmento estão igualmente no corpo (e na alma contemporânea) dos pequenos trabalhos que parecem, ao mesmo tempo, atrair e gerar formas, entre materiais no limiar do reconhecimento e coisas identificáveis que surgem na sua superfície compacta. E, desse ponto de vista, são próximos também das esculturas em exposição, já que nelas podemos vislumbrar uma ou outra forma reconhecível do mundo na iminência de aparecer integralmente (uma harpa? um gradil? um ornamento arquitetônico?), ou como se recém-saída da pura matéria (um raio? uma nota musical?). Mais uma família de obras de Dudi, algumas mostradas aqui, faz pensar em fábulas e coisas que vêm à superfície: a série das Cábulas, que ele executa mesclando técnicas industriais e artesanais deslocadas do habitual. Se o que vemos aflorar nas “resinas” pode ser cogitado como um movimento no espaço, nas Cábulas ele transcorreria mais no tempo, através da memória coletiva. Isso porque suas imagens foram processadas a partir do repertório de antigos desenhos animados, guardando traços da visualidade das fábulas de cinema. Com um DNA assim, não é à toa que essas cenas e aparições de objetos isolados flutuando sobre um fundo mais ou menos homogêneo sejam um pouco como as sobras que identificamos de um sonho. O que, por sua vez, sugere analogias desses trabalhos também com as esculturas e os pequenos relevos, onde algumas coisas se deixam ver individualmente em meio ao que não está completamente revelado ou apenas desinteressado de qualquer semelhança. Em paralelo à efetiva sedução da sua materialidade, onde a luz opera de tantas maneiras, poderíamos, então, imaginar uma corrente que sobe e desce, entre o fundo e a tona de todas as obras expostas aqui. Ou, dito de outra forma: ao olhar para aquilo que nos chama com força nesses trabalhos, consideremos também o seu “calado”, aquela parte do barco que vai da ponta da quilha submersa até a linha visível da água. Levados por Dudi, neste barco estamos.

João Bandeira – curador

Sobre o artista

Dudi Maia Rosa tem uma trajetória de mais cinco décadas de trabalho artístico, documentado em publicações e textos de importantes críticos de arte, que destacam sua utilização de técnicas e materiais diferenciados. Realizou sua primeira exposição individual no MASP, em São Paulo (1978), e participou da Bienal de São Paulo (1987 e 1994), da Bienal do Mercosul (2005 e 2015) e da Bienal de Johannesburgo (1995), entre outras mostras coletivas relevantes. Possui obras em coleções dos principais museus do Brasil, além do Stedelijk Museum (Amsterdan) e da Collection Pinault (Paris). Lírica e Tudo de Novo (Galeria Millan, 2019 e 2022) estão entre as suas exposições individuais mais recentes.

Sobre o curador

João Bandeira foi coordenador de artes visuais do Centro Maria Antonia da Universidade de São Paulo (2005 a 2016) e atualmente coordena o Espaço das Artes da ECA-USP. Escreveu textos para artistas como Waltercio Caldas, Regina Silveira, Jac Leirner e David Batchelor e fez a curadoria de exposições de Evgen Bavcar (Itaú Cultural, 2003); Nuno Ramos e Cildo Meireles (Maria Antonia, 2012); Lina Bo Bardi (Sesc Pompeia, 2014); Geraldo de Barros, Rubens Gerchman e Antonio Dias (Sesc Pinheiros, 2018); Iole de Freitas (Instituto de Arte Contemporânea, 2018, e Instituto Ling, 2021); entre outros.

Esta programação é uma realização do Instituto Ling e Ministério da Cultura / Governo Federal, com patrocínio da Crown Embalagens.

Dois conceituados artistas na Paulo Darzé

19/set

 

Com abertura no dia 21 de setembro, a Paulo Darzé Galeria, Corredor da Vitória, Salvador, inaugura as exposições de Paulo Pasta, um dos mais conceituados pintores brasileiros do cenário contemporâneo, (Galeria 1, andar térreo), e com o título de “Linha em expansão”, em sua primeira exposição na Bahia, pinturas de Lúcia Glaz (Galeria 2, segundo andar). As mostras ficam abertas ao público até o dia 21 de outubro.

Sobre o artista

Paulo Pasta nasceu em Ariranha, São Paulo, em 1959, e com suas pinturas busca construir uma temporalidade na pintura. As cores e as formas dos trabalhos do artista parecem planificar a percepção da passagem do tempo: diante de suas telas, o presente se coloca de maneira quase absoluta. As formas e as geometrias representadas nas atmosferas espessas desenhadas pelo artista são vagarosamente reconhecidas através do olhar atento do espectador, que é, por sua vez, colocado entre horizontes e obstáculos que impedem que se veja o espaço da representação com nitidez. A densidade e o tempo criados por Paulo Pasta são contrários a qualquer concessão ao mundo prático e a suas necessidades de presteza e prontidão: é no rumor e na abertura ao tempo presente que recaem sua poética. Doutor em Artes plásticas pela Universidade de São Paulo (2011), realizou as exposições individuais Pintura de bolso (2023), Correspondências (2021) e Lembranças do futuro (2018), na Millan (SP), além de outras mostras individuais em instituições como: David Nolan Gallery (Nova York, EUA, 2022); Cecilia Brunson Projects (Londres, Reino Unido, 2022); Museu de Arte Sacra de São Paulo (SP, 2021); Instituto Tomie Ohtake (SP, 2018); Palazzo Pamphilj (Roma, Itália, 2016); Sesc Belenzinho (SP, 2014); Fundação Iberê Camargo (Porto Alegre, RS, 2013); Centro Cultural Maria Antônia (SP, 2011); Centro Cultural Banco do Brasil (RJ, 2008); e Pinacoteca do Estado de São Paulo (SP, 2006). Entre suas participações em exposições coletivas estão: Abstração: a realidade mediada (Millan, SP, 2022); Os muitos e o um (Instituto Tomie Ohtake, SP, 2016); 30xBienal (Pavilhão da Bienal, SP, 2013); Europalia, International Arts Festival (Bruxelas, Bélgica, 2011); Matisse hoje (Pinacoteca do Estado de São Paulo, SP, 2009); Panorama dos panoramas (MAM-SP, 2008); Mam (na) oca: Arte Brasileira do Acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo (Oca, SP, 2006); Arte por toda parte (3ª Bienal do Mercosul, Porto Alegre, RS, 2001); Brasil + 500 – Mostra do Redescobrimento (Pavilhão da Bienal, SP, 2000); III Bienal de Cuenca (Equador, 1991); entre outras. Suas obras integram diversas coleções, entre as quais estão: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía (Madrid, Espanha), Pinacoteca do Estado de São Paulo (SP), Museu de Arte Moderna de São Paulo (SP), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (RJ), Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (SP), Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (RJ), Kunsthalle (Berlim, Alemanha), Kunstmuseum Schloss Derneburg (Hall Art Foundation, Holle, Alemanha) e Instituto Figueiredo Ferraz (Ribeirão Preto, SP).

Apresentação da mostra

por Jacopo Crivelli Visconti – “Ser pintura”

Quem acompanha a pintura de Paulo Pasta sabe que ela não opera por meio de saltos ou rupturas, mas por um desenvolvimento silencioso, natural, um prolongar-se de tentativas e exercícios que se dão de uma tela para outra, ao longo do tempo. O prazer de ver, após alguns meses ou anos de intervalo, uma nova exposição de obras do artista é comparável ao de acompanhar, mais ou menos de perto e com uma convivência mais ou menos assídua, o crescimento de filhos de amigos. Pode acontecer que, à distância de meses, eles ainda pareçam iguais, mas pouco a pouco fica evidente que não, eles não são os mesmos. Aliás, já se tornaram totalmente outros. Quando voltei ao ateliê do Paulo, transcorridos anos desde a última vez, para ver as telas que estariam nesta exposição, a conversa se aglutinou ao redor das pequenas mudanças na comparação entre uma tela e outra, ou, para ser mais preciso, na maneira como algo que num quadro chamou a sua atenção e o inspirou, se transforma ao ser levado para outro. Uma linha particularmente sutil, dois retângulos lado a lado contra um fundo homogêneo, uma série de quadrados que se apoiam uns nos outros: diante de um universo tão diáfano e vibrátil, mesmo coisas que a princípio são iguais ou muito parecidas se tornam completamente distintas quando algo ao redor delas muda. A ideia de que um elemento possa “chamar a atenção” do próprio autor do quadro não deve surpreender. Apesar de ter um controle razoável sobre sua composição, como demonstram a nitidez das formas e as variações relativamente limitadas em sua paleta, Paulo é o primeiro a aprender com o resultado. Porque além de pintar, ele olha: é preciso um tempo para fazer, e outro para entender. Não é por acaso que as obras sejam consideradas acabadas, muitas vezes, dias ou semanas depois de terem recebido a última pincelada. É nesse momento que Paulo retira a fita que protege a faixa branca que, frequentemente, fecha a composição em sua parte inferior. Numa das pinturas mais surpreendentes da exposição, na qual três quadrados se empilham num equilíbrio aparentemente instável, ao retirar a fita Paulo percebeu que o branco destoava do resto, e decidiu então transformá-lo num amarelo pálido. O que torna a composição insólita não é tanto esse detalhe, mas a presença dos quadrados. Trata-se de uma forma que também aparece em outras telas da exposição, mas está longe de poder ser considerada frequente no vocabulário do artista. Além disso, a maneira desengonçada como esses quadrados se apoiam uns nos outros, indicando que a torre instável que conformam poderia desmoronar a qualquer momento, sugere um peso, e implicitamente uma tridimensionalidade, ausentes na maioria das outras obras. Apenas outra pintura na exposição sugere algo semelhante ao introduzir um segundo elemento que pode ser considerado raro na poética de Paulo: uma linha diagonal. Nesse caso, a linha fecha na parte superior uma faixa branca vertical, que passa a sugerir, assim, o que poderia ser uma porta ou uma janela entreaberta, e, de novo, a tridimensionalidade. Mas é uma tridimensionalidade que tem a ver antes de mais nada com a própria história da pintura: com o fato de que uma linha diagonal numa tela pode ser usada para sugerir uma perspectiva ou um ponto de fuga. Talvez não seja por acaso, então, que nessa tela, ao invés de uma única faixa branca na parte inferior, Paulo tenha criado uma pequena moldura, quase imperceptível, que percorre os quatro lados da tela, como uma janela por onde olhamos uma cena. Mas é uma cena abstrata, esvaziada, onde as arquiteturas metafísicas de um de Chirico ou as cores de um Piero della Francesca viraram apenas lembranças. É a ideia de uma cena. E uma ideia, no fundo, totalmente alheia a essas pinturas, que nunca contam uma história, nunca pedem para ser “entendidas”, muito menos de um único jeito. As obras de Paulo Pasta parecem afirmar o tempo todo que são apenas campos de cor sobre uma superfície plana, e que qualquer arquitetura ou alusão a elementos do mundo real que possamos ler nelas é apenas isso, uma leitura feita por quem olha, e não algo implícito ou sugerido pela pintura. Não há por que buscar nessas pinturas uma razão de ser ou um significado, não há uma explicação ou uma lógica. Elas apenas existem, como existem uma montanha, uma pedra, uma onda no mar. Essa aparente simplicidade é em realidade o resultado de uma reflexão longa e coerente, a tradução física de um pensamento filosófico, de um olhar e de um profundo conhecimento teórico e prático. As pinturas, porém, não sabem nada disso. Elas são, e nada mais.

Sobre a artista

Lúcia Glaz nasceu em Santos, litoral de SP no ano de 1961. Pintora desde jovem, participou de várias exposições. Entre elas a coletiva “Razão concreta”, ao lado de pintores como Volpi, Rubem Valentim, Judith Lauand e outros, na Galeria Berenice Arvani (SP), em abril de 2016. No ano seguinte participou da coletiva SPART 2001. Em setembro desse mesmo ano na Galeria Berenice Arvani, realizou individual com curadoria de Pedro Mastrobuono, “A beleza é metafísica na pintura de Lúcia Glaz”. Participou da Pinta Miami Art Fair em dezembro de 2017. Em setembro de 2018 fez outra individual, desta vez no Rio de Janeiro, na Galeria Almacén Thebaldi “O diálogo da cor”. Participou da PARTE/Feira de Arte Contemporânea, em 2018. Integrou a exposição coletiva “Modernos Eternos” (Mosteiro de São Bento/SP), em agosto de 2019. Em novembro de 2019 participou do Projeto Felicidade-Clube Hebraica; fez uma individual na Pinacoteca Benedicto Calixto, “A Pintura como processo”, também em novembro de 2019. Participou da feira de arte On Line Arte Viewing Room pela Galeria Berenice Arvani em agosto de 2020, “A geometria como forma de expressão “. Participou da Expo/Sevivon-Beit-Chabat em dezembro de 2020. Em setembro de 2023, individual na Paulo Darzé Galeria, com o título de “Linha em expansão”, com apresentação de Antonio Gonçalves Filho.

Apresentação da mostra

por Antonio Gonçalves Filho – “Liberdade construtiva”

Embora de uma outra geração, a pintura de Lúcia Glaz (1961) guarda uma proximidade com mestres de outras escolas que antecederam sua iniciação na arte nos anos 1980, sendo possível citar pelo menos dois nomes com os quais se identifica: o francês François Morellet (1926-2016), cuja obra, nos anos 1950, prefigura o minimalismo, e o construtivista brasileiro Milton Dacosta (1915-1988). Nesta sua primeira exposição individual na Galeria Paulo Darzé, Lúcia Glaz presta um tributo a Morellet e a Dacosta, exibindo uma nova série de pinturas que evocam tanto a estrutura como a figura do quadrado, marcantes na carreira do francês, de 1953 em diante, como as construções com a referida figura geométrica pintada por Dacosta no mesmo período (e suas composições elaboradas entre 1957 e 1958 justificam essa comparação). Se as primeiras estruturas de Morellet com o quadrado (1953) dividiam a superfície da tela em dezesseis partes iguais, replicando um ordenamento típico de Mondrian, as de Milton Dacosta usavam o quadrado num registro próximo das construções sintéticas de Morandi (sem a pureza formal de Mondrian). Entre os dois, Lúcia Glaz descobre uma solução que não abandona o racionalismo abstrato, mas amplia seu vocabulário. Trata-se de uma investigação que caminha para a forma como Albers caminhou para suas pesquisas sobre a expansão da cor. Uma afinidade, mais que uma influência. Há um projeto gráfico nas pinturas desta exposição que, embora reverente à ortogonalidade, subverte essa ordem para afirmar seu compromisso com a natureza lírica do movimento da figura do quadrado, forma criada pelo homem que, aliás, quer ser perfeita. Pintada sobre a superfície terrosa nas telas de Lúcia Glaz, essa forma, no entanto, resiste à racionalização serialista de Mondrian para sugerir um jogo lúdico com o espectador. A abstração geométrica não extermina a poesia dessa movimentação aleatória de dados que brinca com a aventura cinética de Morellet sem confrontar sua adesão à turma de Sobrino e Julio Le Parc, em 1958. As formas de expressão de Lúcia Glaz não passam pela adesão a qualquer movimento. Antes de se integrar a métodos, ela prefere se render voluntariamente à instabilidade sugerida pela percepção física da figura do quadrado como uma entidade não física que ocupa o espaço, mais ou menos como os quadrados transformados pelas linhas de néon nas pinturas de Morellet. São decisões subjetivas que resistem a uma execução mecânica e revelam o virtuosismo de Lúcia Glaz como renovadora da linguagem construtiva que tanto marcou a arte brasileira. Ela agrega o intimismo de Paul Klee num registro monocromático, sóbrio e próximo das coisas concretas do mundo. Um equilíbrio necessário num mundo desordenado.

Luiz Hermano no Recife

29/ago

 

A exposição “Vinte Palavras Girando ao Redor do Sol”, individual de Luiz Hermano sob curadoria de Walter Arcela é o atual cartaz da Amparo 60, praia de Boa Viagem, no Recife, PE.

A palavra do curador

“Luiz Hermano @luizhermanof é um artista da síntese. As obras selecionadas nesta exposição estruturam-se a partir da seriação geométrica, do apinhamento e da reiteração de um mesmo elemento, deslizado da sua função original, mas nunca da sua forma. Os elementos combinados são entrelaçados por simples arames de cobre e, em algumas ocasiões, um mesmo fio é o elo do todo da estrutura. Essa delimitação consciente de materialidades e recursos da feitura nos rendeu o mote curatorial, a partir do qual friccionamos a poesia do pernambucano João Cabral de Melo Neto com a poética de Luiz Hermano, percebendo em ambos a tendência do que o primeiro escreveu no poema: “Falo somente com o que falo: / com as mesmas vinte palavras/ girando ao redor do sol.” (1961)”

Visitação: Até 30 de setembro

Julia Kater na Simões de Assis

15/ago

No dia 15 de agosto a Simões de Assis, inaugura “À altura dos olhos”, a mais recente exposição individual de Julia Kater em Curitiba, PR. O trabalho de Julia Kater parte da linguagem fotográfica, mas foge dos formatos clássicos do suporte, haja visto que utiliza procedimentos como corte e sobreposição, criando diversas interferências e camadas nas imagens. A curadora Daniele Queiroz aponta no texto crítico que as escolhas “de Julia Kater em “À altura dos olhos” nos fazem lembrar constantemente que todo enquadramento é uma decisão narrativa e um modo de perceber o mundo. Cada gesto é não apenas discursivo, como também político”. Na ocasião da abertura haverá também uma visita guiada com a artista. A exposição vai até o dia 30 de setembro e exibe trabalhos mais recentes e inéditos de Julia Kater.

A fotografia possui como característica intrínseca um aguçado senso de armadilha. Ao enquadrar determinado evento com o aparelho óptico e conceber uma imagem, desavisados podem pensar que conseguiram capturar a chamada realidade. Por várias décadas, desde o surgimento da fotografia, esse foi o discurso que conduziu a trajetória dessa linguagem artística, inspirando e reforçando desde tendências ditatoriais a discursos humanistas. Não é o caso da pesquisa e trabalho de Julia Kater: em sua exposição “À altura dos olhos”, a artista visual desvia da arapuca quase irresistível de descrever os fatos e dar contornos fixos aos acontecimentos que são percebidos com sua câmera.

Não é que o fato não esteja ali. Kater registra momentos aparentemente singelos – e até mesmo banais: uma pessoa sentada de costas olhando para o horizonte, uma mesa cheia de copos e xícaras, uma árvore ou uma pedra, além de suas conhecidas paisagens. Mas é no trabalho de edição posterior à tomada da imagem que a artista demonstra profundo respeito e, até mesmo, admiração pelo enigma da linguagem fotográfica. São os recortes e novos enquadramentos que nos informam sobre a condição silenciosa da imagem: suas obras recusam-se a nos contar uma história totalizante, ao mesmo tempo que nos provocam a completar com nossos próprios sentidos o fio de Ariadne que ela apenas sugere.

As camadas e sobreposições propostas por Kater subvertem a fotografia de paisagem, tão cara à historiografia das artes. Partindo de cenas conhecidas como praias, nuvens e mares, é o gesto físico da artista que nos conta que a imagem não dá conta da realidade. O mapa não é o território, jamais será. Fazendo uso da precisão do estilete em imagens de grandes dimensões, ela inverte noções de céu e horizonte, embaralhando com isso a própria crença do que pensávamos ter visto inicialmente. As paisagens, antes calmas e tranquilizantes, tornam-se abstrações e ganham um caráter questionador, subjetivo e até mesmo filosófico. Junto com a artista, supomos e construímos mentalmente a paisagem que já nos habita em sonhos e devaneios, onde nada está fixo em um ponto e tudo pode acontecer a qualquer momento: o sol pode deslocar-se, a areia virar nuvem e as texturas se confundirem a ponto da abstração. É importante notar como os gestos se repetem e se acumulam, aproximando Kater do pensamento musical, com noções de ritmo e atrelado ao princípio da variação, primordiais ao contemporâneo. São os fragmentos embaralhados que nos conduzem a uma percepção outra, sensorial e mesmo espiritualizada, daquela paisagem que, a princípio, nos parecia tão familiar.    

Quando nos aproximamos das fotografias em menor formato, o silêncio faz-se ainda mais presente. Nem as obras – e, tampouco, a sequência determinada pela artista – nos contam uma história linear, fácil ou única. Kater também reenquadra e modifica as imagens feitas previamente. Se, anteriormente, nos deparamos com o procedimento de corte e justaposição, aqui percebemos a gestualidade do zoom ou close, estratégias comuns na fotografia e no cinema, linguagem na qual a artista também se inspira. E é por meio desses novos quadros que somos colocados de frente para uma silhueta, um contorno de pescoço ou um resto de cotovelo. Vestígios de corpos e estados de espírito. O céu parece se transformar até deixar o sol azul – ou seria apenas uma mancha no filme do negativo? Que mundo é habitado por essas imagens? Quando chegamos a cenas aparentemente “reais”, já estamos de tal forma contagiados que passamos a questionar: o que é, de fato, uma pedra? Qual a essência de uma árvore? E percebemos, como no poema de Szymborska, que essas respostas jamais serão fornecidas, menos ainda pela fotografia. Um dos grandes trunfos da artista é habitar esse silêncio e, mais que isso, reforçá-lo, apresentá-lo e, ao final, nos deixar sozinhos no embate com a própria imagem.

As escolhas expositivas de Julia Kater em “À altura dos olhos” nos fazem lembrar constantemente que todo enquadramento é uma decisão narrativa e um modo de perceber o mundo. Cada gesto é não apenas discursivo, como também político. Ao generosamente abrir as imagens para sua característica enigmática, a artista nos alimenta com pergunta: quando olho, o que vejo? Posso acreditar no que vejo? E, talvez, possamos também pensar: como completo aquilo que vejo? -, se é que seria possível completar.

Daniele Queiroz

José Gamarra – Antologia

11/ago

A exposição “José Gamarra – Antologia”, originalmente apresentada no Museu Nacional de Artes Visuais do Uruguai (MNAV), atual cartaz até 22 de outubro na Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS, cuja oraganização de Enrique Aguerre, Heber Perdigón e Gustavo Possamai, oferece um panorama de quase oito décadas da carreira de um dos mais importantes artistas nascidos na nação vizinha, referência incontornável nas artes plásticas, não apenas no seu país de origem, mas além das suas fronteiras.

José Gamarra foi aluno de Iberê Camargo no Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1959 e, graças ao apoio que recebeu do mestre, foi nomeado professor de pintura na FAAP/Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo. Sua obra desenvolveu-se principalmente na França, onde se estabeleceu definitivamente em 1963, e onde iniciou a produção de suas paisagens da selva amazônica.

Esta mostra, de caráter antológico, abrange seus principais períodos criativos, que se iniciam com os seus desenhos e pinturas precoces, criados na infância e juventude, atravessam a abstração de seus signos até chegarem às suas sempre reveladoras e surpreendentes selvas. As pinturas de Gamarra possuem raízes profundas na história da América Latina e, segundo o próprio artista, podem ser interpretadas como uma espécie de crônica. Suas selvas têm sido visitadas por novos conquistadores que, com seus lança-chamas, apagam o arco-íris e substituem o majestoso condor por helicópteros. “Dupla agressão, contra homens e contra a natureza”, afirma o artista. Assim, a política está sempre presente em sua obra, abordando temas como a guerra, a agressão à natureza, a condição dos indígenas, o passado, o presente e o destino da América Latina. Não se pode compreender a história da arte produzida no Uruguai sem a contribuição do mestre José Gamarra – opinião esta, unanimemente aceita.

Siron Franco no Farol Santander

10/ago

Está marcada para o dia 15 de agosto a abertura da mostra “Siron Franco – Armadilha para capturar sonhos”, no Farol Santander, Porto Alegre, RS. Serão 63 pinturas, executadas de 1973 a 2023, selecionadas por Gabriel Perez Barreiro no acervo do colecionador Justo Werlang. Por seu caráter quase retrospectivo, viabiliza a imersão em seu universo visual e pensamento, tão ligados às realidades e desafios do país.

Além das pinturas, a mostra conta com: 7 pequenos vídeos de cerca de 3 minutos, dispostos junto aos núcleos em que se organiza a mostra, nos quais o artista traz elementos relativos a cada conjunto de obras; e, o documentário “Siron – Tempo Sobre Tela” (2019) de André Guerreiro Lopes e Rodrigo Campos, quase totalmente a partir do arquivo pessoal do artista, oferecendo transparência sobre sua vida e processo criativo. Diversas obras serão exibidas pela primeira vez nesta exposição. A última mostra de Siron Franco na capital gaúcha ocorreu há 22 anos.

Com curadoria de Gabriel Pérez-Barreiro, a mostra é composta por sete núcleos expositivos que agrupam as obras a partir dos temas Cosmos, Segredos, Mitos, Homem, Biomas, Violência e Césio. Cada núcleo apresenta também um breve vídeo com o próprio artista comentando cada um dos temas e seu processo de trabalho. Além das pinturas, a exposição exibe o documentário “Siron. Tempo Sobre Tela” (Brasil, 2019, 91 min), filme dirigido por André Guerreiro Lopes e Rodrigo Campos. Com foco no tempo que brota da interação de um arquivo pessoal inédito com novas filmagens, o documentário ilumina a personalidade inquieta e a mente criadora do artista, encadeando pensamentos e memórias em associações inusitadas e reveladoras.

“Para mim, será uma alegria ver essas obras todas juntas, reunidas em uma mesma mostra. Nesta seleção há um pouco da história recente do Brasil”, afirma Siron.

Muitas das obras que fazem parte da exposição serão mostradas pela primeira vez ao público, como A Grande Rede, pintura realizada em 2023. Elas fazem parte da coleção particular de arte contemporânea de Justo Werlang. Durante a exposição, será lançado o livro das obras de Siron Franco presentes na coleção, incluindo objetos, esculturas e pinturas, além de entrevistas e textos inéditos de Gabriel Pérez-Barreiro, Cauê Alves e Angel Calvo Ulloa. Com cerca de 250 páginas, a publicação da editora Cosac&Naify tem coordenação editorial de Charles Cosac, Fabiana Werneck e Gabriel Pérez-Barreiro.

“Apresentar a exposição Armadilha para Capturar Sonhos é uma homenagem que o Farol Santander Porto Alegre presta ao artista plástico goiano Siron Franco. A mostra encanta por nos fazer navegar pelos vários mundos que o artista transita, tanto na figuração quanto na abstração, mas sempre com o propósito de chamar a atenção para temas importantes para refletirmos”, afirma Maitê Leite, Vice-presidente Executiva Institucional Santander Brasil.

A linguagem visual de Siron oscila entre a figuração (em que as imagens são apresentadas com clareza) e as abstrações (em que a pintura não representa objetos do mundo, mas cria uma impressão geral e uma energia). Suas pinturas são frequentemente constituídas de muitas camadas que se sobrepõem, escondidas pela camada mais superficial e visível aos olhos do espectador. Pérez-Barreiro explica: “Desde a década de 1970, o trabalho de Siron tem abordado de forma sistemática quase todas as questões que são dominantes na arte brasileira e internacional dos dias de hoje: catástrofe ambiental, discriminação, violência, injustiça, corrupção, raça, gênero, classe e assim por diante. Mas, ao mesmo tempo, seu trabalho teimosamente não é sobre essas questões. Siron é um artista que constantemente confunde as expectativas”.

“Porto Alegre é, para mim, uma espécie de lugar onde eu nasci. Minha primeira exposição na cidade aconteceu em 1972, quando ainda era muito jovem. É um lugar onde tenho muitos amigos e colecionadores”, afirma Siron Franco. Dessa forma, a exposição é também uma oportunidade para o público porto-alegrense revisitar a obra de Siron Franco que, há 22 anos, não tinha um conjunto tão representativo de seu trabalho apresentado no Rio Grande do Sul (a sua última individual aconteceu em 2001, no extinto Centro Cultural Aplub, com a série de objetos escultóricos intitulada “Casulos”). Em 1999, o artista ganhou uma retrospectiva no MARGS.

Sobre a coleção e o colecionador

Justo Werlang é colecionador de arte há aproximadamente três décadas. Personalidade importante no meio artístico brasileiro, é um dos responsáveis pela criação da Bienal do Mercosul (da qual foi presidente na 1ª e na 6ª edição), da Fundação Iberê Camargo (na qual integra o Conselho desde 1995), além de ter participado ativamente na Fundação Bienal de São Paulo (2009-2018). Sua coleção está constituída, especialmente, de trabalhos de Iberê Camargo, Francisco Stockinger, Siron Franco, Nelson Felix, Daniel Senise, Karin Lambrecht, Mauro Fuke e Felix Bressan, além de obras dos escultores Vasco Prado e Gustavo Nakle. Na opinião de Gabriel Pérez-Barreiro, “Justo Werlang tomou uma decisão importante ao limitar o número de artistas em sua coleção, optando por profundidade ao invés de variedade. Assim, seu acervo é um conjunto de vários núcleos abrangentes, quase retrospectivos, de alguns artistas, entre eles, Siron Franco”. Sobre a exposição “Siron Franco – Armadilha para Capturar Sonhos”, Pérez-Barreiro ressalta que “a diferença dessa seleção para aquela que poderia ser feita para uma exposição retrospectiva de múltiplas fontes, organizada por um museu, é que cada obra passou por um processo de escolha rigoroso e profundamente pessoal do colecionador. Como resultado, a seleção não pressupõe abrangência nem pretende fazer justiça à carreira do artista, embora, curiosamente, passe por praticamente todos os grandes trabalhos e momentos importantes de sua trajetória”. Siron Franco afirma que é muito difícil um artista sobreviver de seu trabalho sem a contribuição do colecionador. E acrescenta: “Cada colecionador escolhe um Siron diferente a partir das obras que coleciona. Colecionar é uma forma de amor, e muitos colecionadores cuidam melhor das obras até mais do que alguns museus. O Justo me coleciona há praticamente 50 anos. Nesta exposição, ele empresta as obras para que elas sejam divididas com o público, o que é algo muito generoso”. Sobre a dimensão que esta coleção toma ao ser apresentada ao público, Justo Werlang declara: “mostrar a seleção realizada pela curadoria, da coleção de trabalhos de Siron, me parece ter potencial para trazer à luz elementos relevantes do pensamento e da obra desse importante artista brasileiro. Essa mostra tende a evidenciar a pesquisa permanente do artista, as invenções artísticas que gerou ao impor-se mudanças periódicas e, por que não, seu precoce e permanente posicionamento frente a questões que só recentemente parecem estar na agenda de governos, instituições, formadores de opinião, e pessoas comuns como eu”.

Sobre o artista

“Não consigo ficar sem pintar, sem criar, porque para mim não importa como a criação vem. Às vezes, eu me impulso só com uma frase. Não importa a forma que a pintura cobre, porque ela é meu grande rio, e os restantes das linguagens são afluentes.” (Siron Franco em entrevista para Angel Calvo Ulloa, curador espanhol. Pintor, escultor, ilustrador, desenhista, gravador e diretor de arte (nascido Gessiron Alves Franco, em Goiás Velho, Goiás, em 1947), Siron Franco tem uma produção artística de predominância pictórica, em que mescla ora num vocabulário surrealista, ora com abstrações ainda passíveis de identificação alegórica, comentários críticos sobre problemas sociais e personagens da cultura pop e do cerrado goiano. Em 1959, aos 12 anos, passa a frequentar como ouvinte as aulas do curso livre de artes da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás), onde permanece até 1964. Simultaneamente aos seus estudos informais, Siron executa diversos retratos e paisagens do cerrado para a elite de Goiânia, a fim de arcar com os custos do curso e auxiliar a vida doméstica, e investe numa figuração gráfica grotesca e criticamente caricatural. Em 1968 é contemplado com o Prêmio de Desenho da Bienal da Bahia, mudando-se no ano seguinte para São Paulo, onde reside até 1971. Em 1974 recebe o prêmio de melhor pintor nacional na 12ª Bienal Nacional de São Paulo, participa também da 13ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1975, com 13 telas da série “Fábulas do Horror”. A série mais conhecida do artista, e que desencadeia uma mudança paradigmática em sua produção, é o conjunto de obras ligadas ao acidente radioativo do Césio 137, em Goiânia, em setembro de 1987. Como resultado de seu estado de indignação pela demora no atendimento aos contaminados e na contenção dos danos causados pela radiação, o artista produz telas, desenhos e esculturas em que há uma economia de elementos de fundo e um destaque às pontuais imagens que funcionam como alegorias a tragédia radioativa, principalmente, o uso do amarelo fosforescente em menção à letalidade da substância e da terra retirada diretamente do entorno da cidade de Goiânia. Após esse evento trágico, sua produção toma um rumo de militância política. O artista passa a elaborar monumentos e ações poético-críticas, transitando desde os tópicos das violações aos direitos civis até os problemas ecológicos e o genocídio histórico das comunidades indígenas. Ainda que com predomínio da pintura em sua obra, a produção de Siron Franco tem uma variedade técnica e material bastante rica, coerente com seus temas, que seguem das crônicas do cotidiano à crítica às fissuras sociais, com enfoque considerável na contingência do entorno de Goiás, com sua população laboral e indígena.

Sobre o curador

Gabriel Pérez-Barreiro é curador e historiador de arte, doutor em História e Teoria da Arte pela Universidade de Essex/Reino Unido e mestre em Estudos Latino-Americanos e História da Arte pela Universidade de Aberdeen/Reino Unido. De 2008 a 2018 foi diretor e curador chefe da Coleção Patrícia Phelps Cisneros, Nova York/EUA, onde atualmente trabalha como conselheiro técnico e estratégico. De 2002 a 2008 foi curador de Arte Latino-Americana no Blanton Museum of Art, Universidade do Texas, em Austin/EUA. De 2000 a 2002 foi diretor de Artes Visuais no The Americas Society, Nova York/EUA. Foi também coordenador de projetos e exposições da Casa de América (Madri/Espanha), curador e fundador da Coleção Essex de Arte Latino-Americana da Universidade de Colchester/Reino Unido. Em 2007, sua exposição Geometry of Hope foi reconhecida como a melhor exposição nacional pela seção norte-americana da Associação Internacional dos Críticos de Arte (AICA). Tem publicado livros e artigos sobre a história da arte iberoamericana e profere conferências e palestras em diversas universidades. É membro do coletivo ESTAR(SER) – the Esthetic Society for Transcendental & Applied Realization. No Brasil, Pérez-Barreiro atuou como curador-chefe da 6ª Bienal do Mercosul em Porto Alegre (2007), curador-chefe da 33ª edição da Bienal Internacional de São Paulo (2017/2018) e curador da representação brasileira na 58ª Bienal de Veneza (Itália, 2019). Foi também conselheiro da Fundação Iberê Camargo.