Outra visão do Brasil do século XIX

19/mai

 

 

Johann Moritz Rugendas, Emil Bauch, Thomas Ender, Friedrich Hagedorn, Eduard Hildebrandt e Augusto Müller são alguns dos artistas e cientistas germânicos que registraram a paisagem humana e natural do país

 

 

Em 1999, o casal Maria Cecília (1922-2014) e Paulo Geyer (1921-2004) doou ao Museu Imperial, em Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro, sua coleção de arte e a casa que a abriga, no bairro carioca do Cosme Velho. Em 2014, a Coleção Geyer foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), tornando-se Patrimônio Cultural do Brasil. O conjunto era considerado a maior brasiliana em mãos particulares do país.

 

 

A partir desta coleção preciosa de 4.255 pinturas, gravuras, desenhos, mapas, livros de viagem e objetos, os curadores Maurício Vicente Ferreira Júnior, diretor do Museu Imperial, e o historiador de arte Rafael Cardoso selecionaram 200 obras, para reconstituir parte da contribuição germânica (alemães, austríacos e suíços) à formação cultural do Brasil do século XIX, completada por peças do acervo do Museu Imperial e itens emprestados da coleção particular de Flávia e  Frank Abubakir. Nasceu, assim, a mostra “O Olhar Germânico na Gênese do Brasil”, em cartaz a partir de sábado, 21 de maio, no Museu Imperial, sob patrocínio da Unipar, através da Lei de Incentivo à Cultura.

 

 

“Ao contrário do que preconiza o senso comum, que costuma enfatizar a relação com a França, a participação de artistas de língua alemã foi intensa e constante ao longo do século XIX. A exposição recupera o legado desses artistas através das obras de Thomas Ender, J.M. Rugendas, barão de Löwenstern, Ferdinand Pettrich, Augusto Müller, Friedrich Hagedorn, Eduard Hildebrandt, Franz Keller, Ernst Papf, Emil Bauch, entre outros, oferecendo uma visão nova e vibrante do Brasil numa época formativa para a ideia da nacionalidade”,  declara a curadoria.

 

 

Cena política internacional

 

 

Foi depois da derrota de Napoleão Bonaparte que o Império Austríaco e o Império Português, então sediado no Rio de Janeiro, começaram a firmar uma aliança estratégica – expressada pelo casamento do príncipe D. Pedro de Alcântara com a arquiduquesa Leopoldina, filha do imperador austríaco Francisco I, em 1817. A comitiva que acompanhou a futura imperatriz em sua vinda ao Brasil incluiu os naturalistas Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, incumbidos pela Academia de Ciências da Baviera de realizarem longa viagem de pesquisa pelo país. Trocas efetivas se ampliaram a partir de então.

 

 

A exposição

 

 

“O Olhar Germânico na Gênese do Brasil” está dividida em núcleos que contemplam os temas: Rio de Janeiro à vista – pinturas de paisagem com temática do RJ; Retratos da vida da corte – retratos de notáveis do Império; Olhar a gente brasileira – obras com figuras anônimas, a maioria aquarelas e desenhos; Imaginar o Brasil – livros e estampas litográficas relacionadas a vistas e viagens pelo país, e O olhar do colecionador, instalação com imagens e objetos da Casa Geyer.

 

 

Rio de Janeiro à vista

 

 

Com a abertura dos portos em 1808, passaram a circular pelo mundo marcos paisagísticos do Rio de Janeiro, como Corcovado, Pão de Açúcar, Igreja da Glória e Morro do Castelo, em pinturas e litografias. Esta internacionalização propiciou trânsito comercial, diplomático, científico e a vinda de artistas, atraídos pela natureza deslumbrante do novo país. Muitos vinham de países de língua alemã. Neste núcleo está a contribuição destes artistas à formação de uma iconografia da cidade. A onipresença da escravidão não escapou à atenção dos pintores.

 

 

Retratos da vida da corte

 

 

A concessão de títulos nobiliárquicos e honrarias servia para confirmar o status social e econômico. Os contemplados iam da família imperial a súditos anônimos e duques, marqueses, condes, viscondes, barões, comendadores e dignatário de ordens imperiais. Neste segmento estão retratos pintados de notáveis. Eles exerceram a função de dar visibilidade à posição social do retratado. O mercado local se tornou atraente para artistas estrangeiros especializados em retratos. E eles vieram para o Brasil.

 

 

Olhar a gente brasileira

 

 

Os artistas do século XIX registraram o cotidiano de uma sociedade ainda afundada nas relações perversas com a escravidão. A massa escravizada, presente na paisagem humana, está retratada nos trabalhos deste núcleo. A estranheza do cenário aos olhos dos artistas estrangeiros os moveu a chamar a atenção do mundo para a situação dos escravos, que a sociedade fingia ignorar.

 

 

Imaginar o Brasil

 

 

A circulação internacional de livros, estampas, panoramas e álbuns de vistas deste segmento evidenciou a contraposição entre uma Europa civilizada e o suposto exotismo do resto do mundo. O imaginário que se formou da natureza tropical, selvagem e indomável, passou a confrontar uma ideia de domesticidade e civilidade como marcas de pertencimento cultural. O olhar estrangeiro oferecia uma lente para os brasileiros que quisessem enxergar a imensidão do Brasil.

 

 

O olhar do colecionador

 

 

Maria Cecilia e Paulo Geyer passaram quatro décadas a coletar, em casas de leilões mundo afora, pinturas, gravuras, desenhos, mapas, livros de viagem e objetos de arte para criar a Coleção Geyer.  A doação integral do conjunto e da casa que o abriga a uma instituição pública (Museu Imperial) é um exemplo de caráter social e merece ser sempre festejada. Esta sala se dedica a invocar o espírito do casal de filantropos e recordar um ambiente da casa em que viveram durante tantos anos no Rio de Janeiro.

 

 

Homenagem a Petrópolis

 

 

Completam a mostra objetos produzidos por artistas germânicos radicados em Petrópolis, como as esculturas de madeira de Carlos Spangenberg –  suas bengalas eram apreciadas por D. Pedro II. Copos e pesos de papel de vidro e cristal lapidados por Henrique e Guilherme Sieber, eram os souvenirs mais procurados pelos que visitavam Petrópolis. As peças destes artistas e mais as pinturas de Karl Ernest Papf e de Friedrich Hagedorn, pertencentes à coleção do Museu Imperial, estarão lado a lado com itens da Coleção Geyer, como paisagens da cidade serrana e seus arredores. É uma homenagem da curadoria a Petrópolis, tão afetada pelas chuvas recentes.

 

 

Patrocínio

 

 

“O Olhar Germânico na Gênese do Brasil” tem patrocínio, através da Lei de Incentivo Fiscal, da Unipar, hoje fabricante de cloro, soda e PVC, cuja origem, a Refinaria União, foi fundada por Alberto Soares de Sampaio, pai de Maria Cecília Geyer, como refinaria de petróleo. Seu genro Paulo Geyer se tornou sócio de Alberto neste negócio. Após a morte de Geyer em 2004, seu neto Frank Geyer Abubakir entrou para o conselho da empresa, representando os herdeiros. Em 2008, Frank se tornou chairman e atualmente é presidente do conselho da Unipar.

 

 

Paulo von Poser, desenhos de nus

13/mai

 

 

A mostra apresenta obras inéditas produzidas pelo artista durante os últimos 40 anos, refletindo sobre o corpo nu masculino e a plataforma do desenho.

 

A VERVE Galeria, Av. São Luis, 192, sobreloja 06, Edifício Louvre, República, São Paulo, SP, apresenta a exposição “Desenhos nus: 1982-2022”, individual do paulistano Paulo von Poser, com um recorte de trabalhos do artista em suas reflexões sobre o corpo nu masculino. A mostra cobre um arco de 40 anos de produção artística de von Poser, com desenhos, colagens e esculturas, além de um livro de artista dedicado a Hudinilson Jr (1957-2013). A exposição inaugura neste sábado, dia 14 de maio e permanecerá em cartaz até o dia 14 de junho.

 

As obras apresentadas são inéditas, algumas guardadas pelo artista há décadas em seus arquivos, envolvidas por um tom íntimo, observador e confessional. A exposição, que enfatiza o gesto do desenho, as paixões e os trabalhos sobre papel, reapresenta outras narrativas aprofundadas por von Poser, amplamente reconhecido por seus desenhos de rosas e paisagens.

 

Nas palavras de Giancarlo Hannud, curador da exposição, “há mais de quatro décadas, von Poser vem se engajando de forma constante com o desenho, cotidianamente registrando as infinitas possibilidades expressivas do marcar a traços uma dada superfície, à guisa de outra coisa qualquer”. É a partir dos mecanismos do olhar, do admirar e do desenhar que se estrutura a exposição, onde, continua o curador, “seus desenhos do corpo representado falam tão alto quanto seu gesto marcador, desenhador e desenhado, confluindo-se para dar origem a algo novo. Dissolvidos artista e modelo, tornam-se, ambos, desenho, sugestão tátil e imorredoura de um encontro vivido e passado. Como disse o artista: “Se o desenho pode ser considerado amoroso na sua relação com o olhar, essa condição diz respeito ao encontro do traço do carvão com o papel, do encontro do modelo com as outras imagens projetadas do seu corpo, do encontro do artista com seus desejos e medos.” Desses três encontros engendra-se o desenho de von Poser.”, conclui Hannud.

 

Sobre o artista

 

Paulo von Poser (São Paulo, 1960) graduou-se em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU USP) em 1982. Trabalha sobretudo com desenho, cerâmica, escultura, gravura e ilustração, refletindo sobretudo acerca da cidade, do corpo e das flores. Lecionou, de 1986 a 2018, na Universidade Católica de Santos (Unisantos) e leciona desde 2007 na Escola da Cidade, em São Paulo. Há uma forte relação entre o trabalho de professor e de desenhista, uma vez que as caminhadas com seus alunos alimentam a produção. Paulo von Poser participou de dezenas de exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior, e seus trabalhos integram inúmeras coleções privadas e públicas, como a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu de Arte de São Paulo (MASP), o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC USP), o Museu da Casa Brasileira (MCB) e o Museu Afro Brasil.

 

Sobre a galeria

Galeria Verve

 

A Verve é uma galeria de arte contemporânea fundada em São Paulo, em 2013. Nascida do entusiasmo e inspiração que animam o espírito da criação artística, a Verve é abrigo para diferentes plataformas de experimentação da arte contemporânea. A eloquência e sutileza que caracterizam o nome do espaço também estão presentes na cuidadosa seleção de artistas e projetos expositivos. Por entender que as linguagens artísticas compreendem processos contínuos e complementares, a galeria representa novos talentos e profissionais consagrados que transitam livremente entre a pintura, o desenho, fotografia, escultura e a gravura. Dirigida pelo artista visual Allann Seabra e o arquiteto Ian Duarte, a galeria ocupa um espaço no mezanino do histórico Edifício Louvre, em franco diálogo com o patrimônio construído da cidade de São Paulo. Na diversidade de seus espaços expositivos emergem possibilidades de curadoria que vão além do cubo branco, estendendo-se para a rua e cumprindo a função integradora entre a arte, o público e a cidade. A Verve é membro da Associação Brasileira de Arte Contemporânea [ABACT] e integra o Comitê Consultivo da SP-Arte.

 

 

A obra original de Artur Lescher

12/mai

 

 

O Farol Santander Porto Alegre, centro de cultura, empreendedorismo e lazer da capital gaúcha, exibe a exposição inédita “Observatório”, do artista visual paulistano Artur Lescher. Trata-se da primeira grande mostra individual de Lescher em Porto Alegre e apresenta, com 28 obras, uma retrospectiva de sua carreira. Observatório fica em cartaz no icônico edifício porto alegrense até 24 de julho. Das obras expostas, sete foram desenvolvidas especialmente para a exposição no Farol Santander.
Artur Lescher se destaca pelas obras tridimensionais e materiais inusitados para a construção de suas esculturas. O artista já teve grandes exposições individuais e coletivas em países como Estados Unidos, França, Alemanha, Argentina e Uruguai. Aos 25 anos já marcava presença na Bienal de São Paulo em 1987, desenvolvendo poética escultórica baseada nas observações e experimentações dos ambientes expositivos.

 

 

“É com grande alegria que o Farol Santander acolhe a exposição Observatório, de Artur Lescher. Um dos artistas com trajetória mais destacada e consistente do país, Lescher relaciona arte, design e arquitetura em uma obra instigante e poética. Através de projetos que trazem grandes nomes da arte brasileira para interagir com o icônico edifício que abriga a sede do Farol Santander Porto Alegre, fortalecemos nossa missão de estimular a cultura, aproximar pessoas e despertar a criatividade de um público que vêm se revelando cada vez mais exigente, dinâmico e plural.”; afirma Patricia Audi, vice-presidente do Santander Brasil.

 

 

Logo na entrada da exposição que ocupará as galerias localizadas no mezanino do edifício, os visitantes se deparam com a instalação “Pivô” (2014), uma grande estrutura suspensa desenvolvida em materiais como latão e cabo de aço, medindo seis metros e pesando trezentos quilos, que simula o funcionamento de um pêndulo.
A exposição segue com uma série de esculturas produzidas por Lescher entre os anos de 1998 e 2022. Uma delas, intitulada “Sputinik” (2021), contém três peças que formam uma esfera de madeira com 25 centímetros de diâmetro, suspensa no ar por três hastes finas de metal dourado, que se movem pela sala na diagonal, também provocando um efeito pendular.

 

 

Além de “Sputinik”, são totalmente inéditas e desenvolvidas para sua primeira grande exposição individual em Porto Alegre as obras Finial # 07, 08, 09 e 10, Rio Leethê #19 e Observatório. Destaca-se ainda a obra “Escada” (1998), que já passou por diversos museus e exposições. A escultura mede 24,5 cm x 265 cm e foi desenvolvida em aço inoxidável. Outras séries de trabalhos com elementos como pêndulos, linhas, granito, madeiras e feltro de lã completam o circuito expositivo, explorando o conceito dos corpos que riscam o espaço, deixando rastros retilíneos e leves. Ao mesmo tempo em que o trabalho de Lescher está atrelado fortemente aos processos industriais, atingindo requinte e rigor extremos, sua produção vai além e não tem por fim único à forma. Essa contradição abre espaço para o mito e a imaginação, ingredientes essenciais para a construção de seu “Observatório”.

 

Waltercio Caldas, exposição na Raquel Arnaud, SP

 

 

A Galeria Raquel Arnaud, Vila Madalena, São Paulo, SP, apresenta até o dia 18 de junho a exposição “O estado das coisas”, individual de Waltercio Caldas com apresentação do crítico de arte Paulo Sergio Duarte.

 

 

Arte política e política da arte

 

 

Na época que vivemos, e não por acaso, a política contamina a arte mais do que qualquer variante do vírus durante a pandemia. Não faltam razões para isso: razões étnicas, de gênero, fascismo pelo mundo afora e tantas outras. A história da arte está carregada de grandes exemplos de arte política. A morte de Marat, 1793, de David; A Liberdade conduzindo o povo, 1830, de Delacroix; e, antes desta, A jangada da Medusa, 1818-1819, de Géricault; pela primeira vez, um bando de personagens anônimos, marinheiros náufragos, foram retratados em alto-mar numa tela cuja escala estava reservada para grandes eventos históricos, batalhas, coroações de monarcas e outros. Ela mede 491 por 716 centímetros. O artista tomou conhecimento do naufrágio por uma notícia de jornal dois anos antes, um fait divers. Quando os sobreviventes chegaram à terra, contaram suas agruras – até se alimentaram da carne do corpo de companheiros mortos –, e Géricault se motivou. Guernica, 1937, de Picasso, fica como o momento mais elevado da arte política do século XX. Mas nenhuma dessas obras estaria na história da arte pelas suas motivações políticas externas; estão lá porque, cada uma a seu modo, contribuíram para modificar a linguagem da arte de seu tempo: esta, a política da arte.

 

 

Na exposição O Estado das Coisas, de Waltercio Caldas, temos inúmeros exemplos da experiência política em obras com experimentos inéditos na longa trajetória do artista. E não são poucas as surpresas. O modo como conjuga pintura e escultura numa mesma peça é uma delas. Há um jogo e este é dado pela linguagem, a única política estritamente artística passível de ser praticada no interior da obra de arte: a transformação da linguagem, aquela política que não está presente em praças ou manifestações, mas que clama por novas experiências de percepção.

 

 

Examine-se três dessas demonstrações.

 

 

Observe-se Mondrian em casa. Duas reproduções de Mondrian sobre papel estão dispostas diante de nossos olhos, de dimensões diferentes. Dependendo da distância que tomamos, exige um certo estrabismo, a distância que os separa dilata o espaço pela simples presença. A intervenção do elástico esticado traz uma sutil ironia. Sabe-se que no final de 1919, início de 1920, Mondrian começou suas grades, sempre ortogonais; o elástico traça uma diagonal, além de projetar-se em volume para sustentar um copo que se apoia num simulacro de mesa; ao se estender para o copo, soma três diagonais. Além da curva que contorna o volume do copo. Essas transgressões e transformações em relação à obra que se encontra presente no título, sempre sutis e rigorosas, nos ensinam: não há política da arte sem experiências de linguagem.

 

 

Não existe arte contemporânea que não seja experimental. Sabemos disso desde Adorno e sua Teoria Estética. Mas existe algo em Waltercio Caldas, além do experimentalismo: um ascetismo que não se confunde com aquele da Minimal Art, trata-se de uma economia que não é avessa ao campo semântico, à polissemia. Isso estimula a experiência da obra.

 

 

Em Acústica II, o exercício sobre o negro domina a cena, apesar da presença sutil do vermelho e do amarelo. De novo, para quem tem memória, a história da arte se infiltra. Como não lembrar o Quadrado negro, 1916, de Malevich, os anos de pinturas negras de Ad Reinhardt e, pela tela à esquerda, Soulages. Nesta, como em todas as obras desta exposição, é preciso não ver alegorias no sentido tradicional do termo. Não há imagens substituindo narrativas. Existe, sim, associação de ideias, mas não aquela freudiana, a associação livre da situação psicanalítica. Aqui as associações de ideias são induzidas pelas obras com a possibilidade da multiplicação de sentidos na apreensão subjetiva de seus significados.

 

 

Caravaggio pode servir de síntese de tudo que acima foi dito. Não existe referência à vida atribulada do artista que dá título ao trabalho. Sabemos de seus duelos, de suas múltiplas prisões, de seu exílio, de sua vida curta – morreu aos 38 anos, em morte controversa. Nada disso está presente no Caravaggio desta exposição, certamente não é uma alegoria. O que interessa é que o artista pioneiro do que viria a ser o Barroco ficou na história da arte não por esses fatos, mas por ter dominado o chiaroscuro como nenhum outro havia feito anteriormente. E é esse que está presente, com seu nome grafado escultoricamente, na pintura-escultura de Waltercio Caldas. Os exercícios nas duas pinturas, a maior verde-escura e a menor vermelho-escura, apesar das diferentes dimensões, são similares: enunciam duas regiões separadas por uma curva. As regiões se distinguem habilmente, o vermelho e o verde mais escuros seguem em direção a apenas um pouco, apenas um pouco mesmo, mais claro. Observem que a verde, maior, é pintada sobre uma tela bem menos espessa que a menor, vermelha. Mas as pinturas estão conversando com outros elementos escultóricos. São elementos dourados que interferem sobre a visão da pintura verde e deixam a vermelha livre, e ao mesmo tempo constroem uma profundidade. Estabelecem um limite físico de aproximação. Vamos rever Caravaggio de outro modo de agora em diante. Temos entre nós um Caravaggio nosso contemporâneo.

 

 

Essa é a política da arte, diferente da arte política.

Paulo Sergio Duarte, abril de 2022.

 

 

Exposição Enciclopédia Negra no MAR

 

 

A mostra “Enciclopédia Negra”, que esteve em cartaz na Pinacoteca de São Paulo, chegou ao Museu de Arte do Rio (MAR). Para a mostra no MAR, seis artistas foram convidados para retratar personagens como Abdias Nascimento, Heitor dos Prazeres, Tia Ciata, Manuel Congo e João da Goméia. A exposição Coleção MAR + Enciclopédia Negra torna pública obras realizadas por artistas contemporâneos para retratar personagens que tiveram suas imagens e histórias de vida apagadas ou nunca registradas. A mostra procura rever e criar uma reparação histórica para conferir possibilidade de retratos a personalidades negras, já que antes do século XIX, apenas os nobres eram retratados. Já negras e negros, foram registrados, muitas vezes, em condições anônimas e em cenas como carregando mercadorias na cabeça.

 

 

O projeto Enciclopédia Negra, dos consultores e curadores Flávio Gomes, Lilia Schwarcz e Jaime Lauriano, trouxe o trabalho de 36 artistas contemporâneos que reproduziram retratos dos biografados e interromperam a invisibilidade que existia até hoje na vida dessas pessoas que ficaram com os rostos apagados pela falta de registros visuais na história. O trabalho resultou também num livro também que reuniu biografias de mais de 550 personalidades negras, em 416 verbetes individuais e coletivos, publicado em março de 2021 pela Companhia das Letras.

 

 

“O público vai conhecer a história de quase 200 personalidades negras porque as obras estão acompanhadas de pequenas biografias e ter contato com um catálogo sensacional de artistas negros, negras e negris. É uma oportunidade de ver o trabalho de jovens artistas, que têm feito uma arte figurativa, política, ativista e belíssima de grande qualidade e reconhecimento nacional e internacional. Essa é uma exposição em que o público irá de encontro a uma nova forma de se ver, estar e experimentar esse Brasil numa visão mais inclusiva e mais plural porque ela enfrenta de maneira direta uma política de apagamento das populações negras”, ressalta a consultora e curadora Lilia Schwarcz.

 

 

13 novos retratos

 

 

Na exposição “Coleção MAR + Enciclopédia Negra”, das 250 obras de artes expostas, 13 são novos retratos, criados por 6 artistas contemporâneos, convidados pelo MAR. Essas obras vão entrar para a coleção do museu após a mostra. Os artistas são Márcia Falcão, Larissa de Souza, Yhuri Cruz, Bastardo, Jade Maria Zimbra e Rafael Bqueer, que fizeram retratos de personalidades como Abdias Nascimento, Heitor dos Prazeres, Tia Ciata, Manuel Congo, Mãe Aninha de Xangô e João da Goméia. Os curadores do MAR Marcelo Campos e Amanda Bonan também criaram um diálogo, sobretudo, com a coleção africana e afro-brasileira do Museu de Arte do Rio.

 

 

“A exposição é constituída de retratos de personalidades negras da história como políticos, artistas, sambistas, advogados e engenheiros, que foram historicamente importantes, mas que não tiveram seus retratos produzidos. Esses registros, em sua maioria, são ficções, porque você não conhece as imagens dessas pessoas e cada artista criou seus recursos para trazer esse corpo que nunca foi visto até esse momento histórico de ser retratado”, comenta o curador chefe do MAR, Marcelo Campos.

 

 

A “Coleção MAR + Enciclopédia Negra” é a sexta exposição inaugurada neste ano pelo Museu de Arte do Rio, uma parceria com a Pinacoteca de São Paulo, restabelecendo nova conexão com outros museus.

 

 

“Recentemente inauguramos a exposição “Yorùbáiano” na Pinacoteca e agora chegou a vez do MAR receber a Enciclopédia Negra. A parceria com a Pinacoteca de São Paulo é um marco importantíssimo na relação e no desenvolvimento de exposições que conquistam cada vez mais audiência e que por terem perspectivas universais são representativas tanto da realidade do Rio quanto de São Paulo.”, ressalta Raphael Callou, diretor da Organização dos Estados Ibero Americanos (OEI), instituição gestora do MAR.

 

 

Até 03 de julho.

Fonte: ArtRio

 

 

Exposição no Memorial Getúlio Vargas

 

 

No mês em que, no Brasil, é relembrada a abolição da escravatura, os artistas André Vargas e Pedro Carneiro, com participação do DJ Mam, ocupam o Memorial Municipal Getúlio Vargas, na Glória, Rio de Janeiro, com a exposição “Água Banta”, em que propõem uma reflexão que parte do passado colonial e as relações diaspóricas com a água, elemento fundamental à vida, e com múltiplas funções – banhar, lavar, limpar, beber, cozer, purificar, mandingar, benzer. A curadoria é de Shannon Botelho, que reuniu quatro trabalhos de cada artista. A trilha sonora da exposição tem uma playlist criada por DJ Mam, que também pode ser acessada no Spotify.

 

 

O curador Shannon Botelho observa que “…se o corpo humano é composto anatomicamente por água, constituímos fisicamente a história liquefeita, a dor da travessia, o sal e o suor do passado. De certo modo, poderíamos dizer que a água que nos benze e alimenta nos trouxe até aqui, constituindo e significando as nossas existências tão plurais. É curioso pensar, que a exposição acontece fisicamente abaixo de um grande espelho d’água, desativado, dentre outros motivos, a pedido dos moradores do bairro para que a população em situação de rua não faça uso dele para sua higiene pessoal. Um corte muito preciso é estabelecido de imediato: a relação da cidade com o direito à água e sua utilização”.

 

 

A exposição propõe um tempo de reflexão continuado, promovendo simbolicamente a limpeza das mentes e corações, dos conceitos e das construções simbólicas. Nos quatro trabalhos de Pedro Carneiro, o destaque é a videoinstalação, que ocupa com sal grosso um lugar central na exposição, em que a água é tratada como restauradora da vida, e não apenas como fonte de energia. Um “corpo-entre” o passado e o futuro. Estará também em exibição a pintura de Pedro Carneiro, realizada sob direção do multiartista DJ Mam, em parceria com os artistas Tarciov, Batmam Zavareze e o tcheco Jan Kálab, feita para a capa do single “Oloxá, a Cura”, remix para a música de Luedji Luna e Ministereo Público Soundsystem. Os quatro trabalhos de André Vargas constroem no espaço do Memorial Getúlio Vargas um horizonte possível quando se está abaixo do nível do mar. Integrando os meios expressivos contemporâneos, a exposição tem uma trilha sonora, com a playlist exclusiva “Água Banta”, produzida por DJ Mam, disponível também no Spotify.

 

 

A exposição ficará em cartaz até 19 de junho e tem apoio da Galeria Movimento e da Sotaque Carregado Artes.

 

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Anna Maria Maiolino – psssiiiuuu…

10/mai

 

 

 

Mostra antológica traz vida-obra de uma das mais relevantes artistas contemporâneas. A exposição inédita de Anna Maria Maiolino – inaugurada no mês em que a artista completa 80 anos – ocupa, com cerca de 300 obras, todas as três grandes salas do andar superior do Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, SP, espaço só antes dedicado às individuais de Yayoi Kusama e Louise Bourgeois. O curador Paulo Miyada esteve nos últimos três anos ao lado de Anna Maria Maiolino para juntos desenharem a exposição, construída a partir de muitas horas de conversa que resultaram, além de um ensaio aprofundado do curador sobre a produção da artista, em maquetes que dispõem meticulosamente cada obra selecionada.

A mostra antológica, uma vez que traz momentos, obras e acontecimentos significativos na “vida-obra” da artista, como ela mesma nomeou, traz pinturas, desenhos, xilogravuras, esculturas, fotografias, filmes, vídeos, peças de áudio e instalações.  Segundo Paulo Miyada, Anna Maria Maiolino – psssiiiuuu… (onomatopeia que pode ser assobio, chamado, flerte, pedido de silêncio, segredo, sinal) foi concebida como uma espiral que circula entre todas as fases e suportes da carreira da artista. A analogia com a espiral se refere à maneira de voltar e ir adiante ao invés de seguir uma cronologia linear. “Vai-se adiante para se reencontrar o princípio, consome-se energia para devolver as coisas ao que sempre foram”, destaca o curador.

 

Até 24 de julho.

 

A obra de Francis Pelichek revisitada

 

 

Será inaugurada no  próximo sábado, dia 14 de maio, às 11h, na Pinacoteca Aldo Locatelli da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, RS, a exposição “Francis Pelichek – Um boêmio moderno em Porto Alegre”.

A exposição apresenta um pouco da vida e da obra desse pequeno-grande artista, que chegou ao estado em 1922, onde viveu até seu falecimento precoce, em 1937. São aproximadamente 60 obras de acervos públicos e particulares, que oferecerão a oportunidade tanto de conhecer um pouco mais da produção de Francis Pelichek, como de pensar acerca do cenário artístico em Porto Alegre ao longo das décadas de 1920 e 1930. A curadoria é de Paula Ramos e Ana Luiza Koehler que desenvolve, no âmbito de seu doutorado, pesquisa sobre o artista.

 

 

Iluminuras de Walter Carvalho

 

 

Conhecido por seu trabalho em fotografia, cinema e televisão, Walter Carvalho apresenta ao público pela primeira vez sua produção artística autoral em Platinotipia. Na mostra “Iluminuras”, na Mul.ti.plo Espaço Arte, no Leblon, Rio de Janeiro, RJ, o artista reúne uma vigorosa produção composta de trabalhos inéditos a partir de suas experiências poéticas com processos alternativos e rudimentares de impressão. A mostra será inaugurada no dia 12 de maio, às 17h, ficando em cartaz até 24 de junho, com entrada franca.

 

 

Utilizando como matriz seu acervo autoral de fotografias, Walter Carvalho atua sobre as imagens com pinceladas de platina em um complexo processo de impressão. O resultado são as “Iluminuras”. “Novas formas e imagens surgem do inesperado e se aconchegam ‘desplanejadas’. Uma profusão de pretos e meios tons surge de repente, podendo ser lascas de luz sobre os objetos ou derivados deles, mas com espessura”, conta Walter Carvalho. Nas obras, de aproximadamente 70 X 90 cm, feitas sobre papel, um ferro de engomar gira como se estivesse fora do ritmo, numa dança improvável. Manchas, resíduos ou vestígios – o rastro do pincel – de alguma maneira dilaceram as imagens e formas originais sem entretanto, abalar sua estabilidade.

 

 

Há mais de 20 anos, Walter Carvalho dedica-se a sua pesquisa artística no universo de impressões alternativas e rudimentares: “Em 1998 comecei a experimentar impressão com gelatina de prata. Cheguei a expor em 2004, no Instituto Moreira Salles (Rio) e no Paço Imperial (Rio). Depois fui aos poucos tentando outros caminhos, até chegar à Platinotipia. São dez anos nesse estudo”, conta o artista. “Vejo nesses trabalhos uma guinada importante. O artista nesse tempo desencantado desestabiliza a forma, investe em temporalidades que se somam ao seu gesto revelador. Walter Carvalho aposta no experimento e no risco poético”, completa Maneco Müller, diretor da galeria Mul.ti.plo. Um dos interesses de Walter pela técnica, patenteada em 1873 pelo inglês William Willys (1841-1923), é a possibilidade de unir processos diferentes separados por séculos de distância. “As matrizes são feitas a partir de fotos mecânicas com filme fotográfico ou arquivos digitais. A Platinotipia permite esse encontro entre o passado longínquo e os elementos de hoje”, diz o artista, ressaltando também a longa durabilidade conferida pelo uso do nobre metal nas impressões fotográficas. “A platina resiste à impiedosa passagem do tempo”, afirma. Entre os grandes nomes da fotografia mundial que se dedicaram ao processo estão Alfred Stieglitz (1864-1946), Edward Weston (1886-1958), Irving Penn (1917-2009) e Robert Mapplethorpe (1946-1989).

 

 

Sobre o artista

 

 

Walter Carvalho nasceu em João Pessoa, PB, 1947. Fotógrafo e cineasta, é formado em Design Gráfico pela Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro (ESDI). Desde 1972, desenvolve intensa atividade como profissional da imagem: em fotografia, no cinema e na TV. No cinema, foi responsável pela direção de fotografia de “Lavoura arcaica”, “Abril despedaçado”, “Madame Satã”, “Central do Brasil”, “Amarelo manga” e “Terra estrangeira”, entre outros. Conquistou o Golden Frog, no Film Festival of Cinematography Camerimage, com Central do Brasil, e The International Cinematographers Film Festival “Manaki Brothers” por três vezes. Conquistou a Golden Camera com os filmes: “Terra estrangeira”, “Central do Brasil” e “Lavoura arcaica”. Seu percurso duplo de fotógrafo e cineasta reflete-se em todo seu trabalho autoral. Conta com diversas publicações, como o livro “Contrastes simultâneos” e “Fotografias de um filme”, ambos da Cosac Naify; “Walter Carvalho – Fotógrafo”, editado pelo IMS (2003), “Terra Estrangeira, Leitura das imagens do filme Terra Estrangeira”, Ed. Dumará. Em cinema, recebeu mais de 80 prêmios nacionais e internacionais. Em fotografia, destacam-se os prêmios no Concurso Nacional de Fotografia da Revista Realidade, 1972; e o primeiro lugar no Concurso Nikon (Viagem ao México), 1973. Suas últimas exposições foram “Retraço”, no Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, 2018, com texto de Texto Agnaldo Farias; e no Paço Imperial do Rio de Janeiro, 2019. Sua obra fotográfica integra as coleções do Museu de Arte do Rio (MAR), do Maison Européenne de la Photographie (MEP-Paris), da Coleção Pirelli/Masp, do Instituto Moreira Salles, do Museu de Arte Moderna (São Paulo) e da Coleção Fnac, entre outros. Integra a “Photographers Encyclopaedia International, 1839 to the present”. É membro da Academia de Cinema de Hollywood. Participou de mais de 30 exposições de fotografia no Brasil e no exterior. Como artista, é representado pela Mul.ti.plo Espaço Arte.

 

De 12 de maio até 24 de junho.

 

 

Hipocampo, individual de Silvia Velludo

 

 

A Galeria Marcelo Guarnieri, Jardins, apresenta, entre os dias 14 de maio e 25 de junho, “Hipocampo”, segunda exposição individual de Silvia Velludo no endereço de São Paulo. Além das pinturas da série “Hipocampo”, realizadas entre 2016 e 2022, a mostra reúne algumas das obras produzidas pela artista durante a década de 2000, como as pinturas das séries “Penumbras” (2003-2004), “Divisas” (2007-2012), o livro-objeto em letreiro digital “Ida” (2012) e a videoinstalação “Projeto de Aurora” (2002). A exposição conta com texto assinado por Fernando Cocchiarale.

 

 

Formada por mais de 300 pinturas, a série “Hipocampo” dá continuidade à investigação de Silvia Velludo sobre a produção e a reprodução de imagens através da pintura. A artista faz uso de um extenso acervo de fotografias de celular, de notícias de jornal, cenas de filmes e posts de redes sociais para refletir sobre a aparente banalidade dessas imagens e o ritmo acelerado em que são difundidas, traduzindo os códigos da linguagem fotográfica digital para a linguagem pictórica. O título remete à estrutura cerebral responsável pelo armazenamento da memória e faz uma alusão ao registro involuntário que fazemos das imagens que nos rodeiam e as infinitas associações inconscientes que podem ser estabelecidas entre elas. O conjunto de pinturas de tamanhos variados é distribuído por toda a extensão das paredes da galeria, formando um grande painel diagramático de retratos do cotidiano, intercalados ora com telas recobertas por pigmentos metálicos, ora com placas reflexivas de aço, bronze, cobre e latão que, ao espelharem a imagem do espectador, interrompem o fluxo do “scrolling” visual e servem como zonas de respiro.

 

 

“A visão panorâmica de tantas imagens em fluxo nos conecta diretamente à experiência de navegação digital nas telas dos celulares e nas redes sociais, profusão que nos chega diariamente produzindo histórias descontínuas e quebras de narrativa. A dinâmica das imagens digitais já não nos permite saber a origem e a história de cada momento, local ou encontro, em seus respectivos tempos e lugares, diante da acelerada produção, difusão e consumo de informações pelas redes. O panorama de cenas de Silvia Velludo propõe uma reflexão em torno da saturação de imagens nos meios digitais e a busca por permanência e sentido que uma obra artística idealmente almeja em sua essência.”, observa o crítico Fernando Cocchiarale.

 

 

A reapresentação das séries “Penumbras” (2003-2004) e “Divisas” (2007-2012) propicia ao público um reencontro com as origens da pesquisa de Silvia Velludo sobre a formação da imagem através da pintura. Ao longo da década de 2000, a artista estava menos interessada pela imagem como representação figurativa do que por sua constituição enquanto fenômeno físico. Em “Penumbras” a artista trabalha a dispersão da luz através do embate entre pequenos pontos de cor, formando, em cada tela, estruturas reticuladas que podem remeter à imagem granulada dos televisores de tubo. Se nessa série Silvia Velludo explora efeitos ópticos através do uso da tinta acrílica e das diferentes combinações e tonalidades possíveis de serem alcançadas pelo material, em “Divisas” ela escolhe trabalhar com as propriedades inerentes das contas de vidro. O caráter cintilante do vidro colorido é intensificado nestas pinturas pelo agrupamento de uma grande quantidade de pequenas esferas coladas em uma superfície de 4m², causando aos olhos a impressão de que há uma desintegração da cor em milhares de pontos de luz. Anterior a essa investigação desenvolvida por Silvia Velludo através da pintura sobre a formação da imagem como um fenômeno óptico, é a sua produção de videoinstalações. A videoprojeção surgia para a artista como uma linguagem que lhe permitia trabalhar com a materialidade da própria luz, explorando a variação de cores, formas e palavras a partir dos recursos da imagem em movimento. “Projeto de Aurora” (2002) consiste em uma sequência de cores projetadas em uma superfície quadrada formada por cerca de 30 kg de sal grosso. Similar ao interesse de Silvia Velludo pela incidência da luz na matéria vítrea é o interesse pela incidência luminosa na estrutura cristalina do sal e sua alta capacidade de reflexão. As cores projetadas fazem referência às cores produzidas pelas Auroras Polares, fenômenos físico-químicos que resultam de interações entre o campo magnético terrestre e o plasma solar e que podem ser observados pela emissão de luzes coloridas que se movem pelo céu.

 

 

“Ida” (2012) é um livro-objeto em formato de letreiro digital que reúne diversos escritos produzidos pela artista ao longo de doze anos a partir daquilo que ocorria ao seu redor – em espaços públicos, privados ou mesmo na televisão. O trabalho foi apresentado pela primeira vez na exposição “Há mais de um poema em cada fotograma” em 2012, onde a artista ocupou todas as paredes da galeria com centenas de detalhes ampliados de fotografias realizadas durante dez anos em uma operação similar, registrando excessivamente as imagens de seu entorno. Se em “Ida” a artista escolhe a palavra como ferramenta para dar conta desse registro e em “Há mais de um poema em cada fotograma” ela escolhe a fotografia digital, em “Hipocampo” Velludo executa um procedimento já iniciado em sua exposição anterior “Autorretrato com Iphone 5C”, traduzindo o registro fotográfico para a linguagem da pintura. A noção de velocidade é uma questão que perpassa todos esses trabalhos, tanto no embate entre o ritmo ágil de uma escrita de observação baseada na associação livre e a leitura regulada pela lentidão do letreiro, como no embate entre a rapidez da captação da fotografia e o moroso feitio de uma pintura figurativa.

 

 

Fernando Cocchiarale

 

Março de 2022

 

 

A crescente presença dos meios digitais em nossa era definiu novas práticas e questões aos artistas que se utilizam das imagens como meio de criação poética. Como uma contraposição crítica à natureza funcional e pragmática da economia da imagem, muitos artistas têm buscado diferentes modos de refletir sobre a sociedade tecnológica contemporânea. Embora a origem artesanal da imagem tenha sido gradualmente substituída por meios técnicos como a fotografia, com a expressividade da mão cedendo lugar à objetividade das lentes e à rapidez e acessibilidade das câmeras, a reprodução manual de imagens de origem fotográfica ou digital em pintura é uma operação que investiga e reavalia de modo amplo o processo evolutivo dos meios técnicos e tecnológicos e suas possíveis rearticulações. A reunião de pinturas que Silvia Velludo apresenta nesta exposição tem por origem a coleção de inúmeros arquivos de imagem de internet e fotos digitais de celular que a artista seleciona e reproduz em suas obras como repertório visual para o seu fazer poético. Silvia se utiliza da mídia digital como um caderno de notas em que pessoas, lugares e momentos a serem lembrados são guardados em imagem e posteriormente trabalhados em tinta sobre tela. Suas pinturas retratam cenas e acontecimentos que espelham um panorama imagético próprio do universo da cultura digital e da dinâmica das redes sociais em sua profusão de temas, recortes e registros, situando-se entre o memorável e o comum, o admirável e o banal, o insólito e o corriqueiro. As pinturas a partir de arquivos de imagens digitais remontam à última exposição individual realizada por Silvia, Autorretrato com iPhone 5c, em 2016, quando voltou a se dedicar à pintura de observação. As múltiplas cenas do trabalho atual resultam das constantes temporadas de viagem de Silvia Velludo entre sua cidade natal, Ribeirão Preto, e São Paulo, onde também reside e trabalha, e outras localidades em que, acompanhada de pincéis, tintas e telas portáteis, a artista registra suas pinturas diretamente em cada lugar de estadia, justificando a escala diminuta de suas obras. As 295 pinturas realizadas por Silvia Velludo ao longo de seguidas temporadas de viagem estão dispostas por todas as paredes do espaço de maneira a compor uma extensa rede de campos visuais em frações irregulares. Com o aspecto de um diagrama descontínuo, suas cenas deslizam visualmente em séries horizontais, verticais e diagonais que, também em saltos, se remetem a outras cenas por proximidade, semelhança ou oposição, um fluxo de imagens que forma narrativas sequenciais, cruzadas ou aleatórias em associação direta com a observação do espectador. Silvia articula diferentes níveis de significação para as suas imagens. Entre formas e cores sortidas de centenas de pequenas telas de pintura figurativa esmerada, um visitante atento notará a presença de retratos e olhares que parecem dialogar em silêncio com o observador, formando uma narrativa paralela; em outro momento, cenas frugais de crianças e animais de estimação se impõem pela força afetiva, doméstica e familiar que evocam, ainda que seja a intimidade anônima e distante das imagens da internet. Cenas de peixes nadando em círculos parecem estar em ação, como se a pintura guardasse a memória do movimento e capturasse a atenção do espectador. Bonecas, brinquedos e obras de arte se alternam entre paisagens, fruteiras e personagens obscuros das redes sociais e do noticiário em busca de uma contextualização plausível e de sentidos inteligíveis. As pinturas aqui reunidas por Silvia Velludo adquirem sentido pela noção de conjunto que toda coleção estabelece. As diversas situações pintadas sobre tela se interpõem enquanto campos espaciais e planos figurativos, condição aberta que possibilita inúmeras combinações narrativas por justaposição, deslocamento e associação livre. O passeio visual que este dispositivo pictórico propõe reconstitui uma dimensão temporal fílmica da imagem, tanto pela sugestão de movimento contínuo das cenas pintadas – peixes em círculos, olhos em órbita -, como pela ação do próprio olhar que percorre as superfícies das pinturas à procura de novos estímulos e significações. Estas pinturas parecem propor, repetidas vezes, um jogo de adivinhação em torno da identificação das cenas escolhidas pela artista. Como em um desafio ou charada, tentamos reconhecer quais entre aquelas imagens referem-se a notícias, personagens e momentos que lembramos – ou ignoramos. Ou como estas cenas se recombinam em histórias particulares, eventos públicos ou acontecimentos desprovidos de informação alguma enquanto somos levados a imaginar situações, relações e desfechos entre os episódios retratados. Diante desta grande reunião de pinturas somos tomados por um labirinto narrativo de notas cifradas, imagens privadas e públicas, todas fadadas à efemeridade de postagens perdidas e noticiários esvaziados. A visão panorâmica que Silvia nos propõe para estas imagens aponta para uma solução original. A plural diversidade de assuntos exibidos se entrelaça com as inúmeras associações possíveis formadas pelos encadeamentos das cenas como campos de leitura. À maneira de um jogo de palavras-cruzadas composto por imagens em desdobramento visual contínuo, nosso olhar é levado a rastrear superfícies, identificar sinais e construir nexos a partir de um caleidoscópio de fragmentos da realidade. A disposição das telas é alternada por quadros metálicos luminosos e brilhantes em aço, bronze, cobre e latão que provocam um rebatimento do olhar imersivo da pintura e emprestam ritmo ao intenso fluxo de imagens. Como zonas de respiro e contemplação, abrem um intervalo de tempo que parece condensar as vivências imagéticas em um plano de emanações reluzentes e silenciosas. A ágil circulação das imagens digitais nas mídias eletrônicas desvela, por sua vez, sua natureza temporal efêmera que as conduz tanto ao desaparecimento quanto à obsolescência. Em seu pensamento poético, Silvia apropria-se de cenas cotidianas aparentemente comuns e as transfere do meio digital ao suporte material, artesanal e analógico da pintura, meio que empresta um sentido de permanência e duração às imagens. A visão panorâmica de tantas imagens em fluxo nos conecta diretamente à experiência de navegação digital nas telas dos celulares e nas redes sociais, profusão que nos chega diariamente produzindo histórias descontínuas e quebras de narrativa. A dinâmica das imagens digitais já não nos permite saber a origem e a história de cada momento, local ou encontro, em seus respectivos tempos e lugares, diante da acelerada produção, difusão e consumo de informações pelas redes. O panorama de cenas de Silvia Velludo propõe uma reflexão em torno da saturação de imagens nos meios digitais e a busca por permanência e sentido que uma obra artística idealmente almeja em sua essência. O jogo poético firmado entre o universo particular de suas imagens e as notícias e postagens das redes sociais tensiona a nossa percepção do real. Tal qual um dispositivo expositor de memórias e lembranças, somos seduzidos pela curiosidade e pelo espírito imaginativo que tantas imagens reunidas são capazes de estimular. A instalação de pinturas de Silvia revela-se, assim, um inventário de vivências a serem reconstituídas que, como cápsulas de tempo, retém uma dimensão existencial que as imagens resistem em desvelar. A proposição artística de Silvia Velludo nos proporciona, assim, uma experiência contrária àquela celebrada pelo frenesi do mundo digital: a desaceleração intuitiva que reestabelece correlações poéticas entre o real e suas representações a partir da apropriação afetiva e artesanal das imagens. A contemporaneidade de suas pinturas e questões entrecruza-se com a dominante e frágil onipresença das imagens digitais em nosso cotidiano.