Gonçalo Ivo expõe na Laura Marsiaj

30/mai

O pintor Gonçalo Ivo  tornou-se conhecido quando de sua participação, em 1984, da grande exposição organizada por Marcus Lontra no Parque Lage, “Onde está você geração 80?”. Agora, o artista apresenta sua nova produção na Galeria Laura Marsiaj, Ipanema, Rio de Janeiro, RJ. Esta exposição revelou importantes nomes que se tornaram figuras pontuais na pintura contemporânea brasileira como Luiz Zerbini e Beatriz Milhazes, entre outros. Oriundo dessa geração, Gonçalo Ivo aprofundou e ampliou sua pesquisa no campo da pintura, interrogando continuamente a experimentação no ato de pintar em um fazer rudimentar  incrementado pela tecnologia, buscando refletir sobre as relações que abarcam imagens, suportes, técnicas, estilos, materiais, gestos, formas, cores, figuras, etc., em síntese: uma extensa gama de possibilidades.

 

Residindo em Paris há 14 anos, Gonçalo Ivo nunca deixou de expor no Brasil mesmo cumprindo uma intensa agenda internacional. O artista exibirá no espaço da galeria quatro telas de grande formato e no ANEXO, cinco aquarelas. Trabalhos inéditos com a apresentação de Raphael Fonseca e Vera Pedrosa.

 

 

Um texto por dia – Texto de Rafael Pedrosa

 

Lembro de que durante a graduação um professor disse uma frase que nunca esqueci. Após a leitura de uma entrevista dada por Arthur Danto, iniciamos um debate sobre a importância da prática da escrita no campo da história da arte. Ao final da aula, como uma espécie de resumo das discussões, esse professor virou para a turma e disse: “É essencial que todo dia se escreva um texto. Não necessariamente um texto crítico ou fruto de uma pesquisa que diga respeito à arte, mas ao menos um e-mail pessoal com mais de três linhas deve ser feito por dia”.

 

Esse elogio ao fazer permanece na minha memória e muitas vezes foi debatido junto a amigos também escritores e/ou artistas. Algumas pessoas apontam para uma interpretação de certo estímulo a um trabalho incessante, isto é, onde está o espaço para o repouso nessa concepção do mundo? Para além de meu tendencioso caráter workaholic, ao lembrar o modo como essas duas frases foram proferidas, prefiro pensa-las a partir da necessidade de se ter um compromisso com o nosso ofício; dizendo de outro modo, creio que meu professor queria nos orientar quanto à necessidade de estarmos plenos em nossos compromissos, alinhados eticamente e existencialmente ao nosso fazer. Se havíamos escolhido (de modo objetivo ou não) a formação em história da arte, nessa área deveríamos estar com o corpo imerso – daí a importância de exercitarmos sempre a matéria expressiva que tradicionalmente compunha o nosso fazer, ou seja, a escrita.

 

Trabalho com arte contemporânea de modo enfocado há cerca de quatro anos e sou, assim como muitos colegas de profissão, rotulado pelo termo “jovem crítico” e/ou “jovem curador”. Não reclamo desta carga ainda leve que carrego, mas recentemente me dói um pouco viver em uma era em que se normalizam os excessos – das imagens, das mensagens, das ideias, das oportunidades e dos portfolios. Talvez nunca antes tivéssemos tantos jovens artistas efervescentes, mas, ao mesmo tempo, uma tecnologia digital que parece iludir que ser artista é realizar imagens e divulga-las aos quatro ventos pelo Facebook.

 

Qual não foi, portanto, minha surpresa e felicidade a aceitar um novo convite e refletir um pouco sobre a produção recente e a trajetória de Gonçalo Ivo. Se fui orientado para escrever diariamente, tenho a impressão que esse artista também o foi, porém no que diz respeito à sua capacidade de ser um produtor de imagens. Sendo sua primeira participação em exposição coletiva em 1978, podemos afirmar que seu percurso institucional já abarca mais de 35 anos. De lá para cá, foram diversas as participações em exposições desse momento histórico-artístico depois chamado por “geração 80”, além de projetos individuais que circularam as principais capitais do Brasil, além de museus e instituições pela Europa.

 

Se hoje advenho de uma geração de artistas em que as ideias se proliferam muito rapidamente e muitas vezes são movidas pelas fatídicas “curtidas” das redes sociais, Gonçalo me parece exemplar no que diz respeito à sua disciplina do fazer. Sim, estamos a falar de um profissional que poderia ser chamado pelo termo “pintor” – por mais que, claro, sua produção abarque também áreas afins como a gravura, o desenho e mesmo a escultura. De todo modo, mesmo que sua carreira ande junto ao fardo de se assumir enquanto pintor, não lidamos aqui com uma pessoa que nega ou rechaça técnicas que geralmente são interpretadas de modo imediato como sinônimo de certa ideia estilística de arte contemporânea; basta, por exemplo, ler suas reflexões recentes sobre a exposição do videoartista Bill Viola, no Grand Palais, em Paris.

 

Seu compromisso quanto ao fazer está para além da pintura – tem como alvo o campo fenomenológico das artes visuais. Mais do que um aficionado pela técnica, Gonçalo é comprometido com a potência da imagem e é a partir dela que se ergue uma pesquisa formal e poética que nunca estará terminada devido ao seu interesse, justamente, pelo processo diário. Mas de quais modos isso se faz perceptível nas suas obras? Por quais perspectivas podemos abordar a sua produção?

 

Poderíamos nos referir às suas pinturas fazendo um acréscimo de uma pequena palavra após o nome da técnica; “pintura abstrata”, alguns poderiam dizer. Porém, quando recorremos aos títulos dados pelo artista a algumas de suas produções recentes, como, por exemplo, “Aurora” (2014) e “Estrela do Norte” (2012), essa certeza é colocada em dúvida. Longe do lugar da representação figurativa de imagens que poderiam ser qualificadas como paisagem, a produção recente do artista diz respeito a uma resposta no campo da imagem para algo que o chama a atenção através do seu embate entre corpo e experiência ótica.

 

Ao olharmos de perto alguns de seus cadernos, é interessante perceber como que, mesmo que sua pintura recente lide com grandes campos de cor que dominam o espaço da tela e a fragmentam espacialmente, não estamos a contemplar imagens que são construídas de um modo espontâneo ou que se dão diretamente através de um contato imediato entre homem e tela em branco. É nesses cadernos de viagens que se percebe a importância que Gonçalo atribui para o estudo de suas composições futuras. Trata-se de pequenas arenas em que o artista se pergunta sobre as melhores articulações entre formas geométricas e opções cromáticas de modo que a tela posterior seja uma possibilidade de diálogo com algum elemento apreendido anteriormente e recodificado para uma linguagem que poderíamos chamar de abstrata. A abstração, porém, está apenas na incapacidade do espectador reconhecer elementos realistas. Melhor do que esse termo muito usado na história da arte, talvez fosse mais interessante ler as criações do artista pela perspectiva afetiva da memória capaz de possibilitar que uma igreja como a de Santa Maria de Taüll e suas nuances de cor sejam transfiguradas em listras que configuram de outro modo a potência das imagens religiosas.

 

Ao voltarmos o nosso olhar para “Aurora”, sua pesquisa formal se desvela. Busca-se trabalhar com tons ligeiramente diferentes de azul em contraponto a uma série de pequenas listras dotadas de cores diferentes. Joga-se, assim, com a ideia da justaposição entre as cores. Enquanto isso, qualquer certeza em torno de uma abordagem que lidasse com a ideia de simetria precisa ser revista já que ainda que as grandes áreas de cor se assemelhem a retângulos, quadrados e listras, elas apresentam, ao mesmo tempo, pequenos deslocamentos e transições planares que impossibilitam, novamente, um olhar mais catalográfico da análise da imagem. Não apenas no que diz respeito ao desenho dessas formas, mas a fatura e textura que cada polígono apresenta denota uma pesquisa da pintura que a coloca em princípios de uma busca também pelos diferentes efeitos tridimensionais proporcionados por suas pinceladas. Réguas, portanto, não são o bastante para se escrever sobre as telas de Gonçalo Ivo.

 

Essas características formais também se fazem presentes, mas de modo mais contaminado, na outra técnica que acompanha o artista desde o começo de sua carreira, ou seja, a aquarela. Em pequenos formatos, Gonçalo também propõe encontros geométricos, mas não necessariamente rígidos entre cores. Devido à espessura diversa que a técnica, por exemplo, do óleo sobre a tela possui, ao se praticar a aquarela sobre o papel, as cores se encontram e criam novas manchas em suas fronteiras fictícias. Os títulos aqui se fazem presentes dentro dos limites do papel e convidam o público, novamente, a pensar as relações entre imagem e texto em sua produção pictórica. “Acorde noturno – a luz do Parque do Retiro” remete, por exemplo, às recentes experiências do artista na Espanha, onde se encontra sempre atento tanto às tradições pictóricas locais, quanto às diversas luzes e paisagens proporcionadas pelo seu deslocamento por Madri. Talvez seja possível aproximar esses pequenos formatos de imagens dos cartões postais. Por mais que não vejamos uma paisagem explícita, são frutos de uma experiência da paisagem que não deve ser lembrada tal qual uma fotografia e sua mimese, mas sim ecoada através de sensações cromáticas.

 

Uma dessas aquarelas é intitulada “O véu da aurora – caminhando com Maria Leontina”. Ao fazer referência a essa pintora, penso também como poderíamos elencar diversos outros importantes nomes da arte moderna no Brasil e coloca-los em diálogo com Gonçalo Ivo: Alfredo Volpi, Iberê Camargo e José Pancetti. Parece-me interessante pensar, ao lado desses vínculos já estabelecidos por outros escritores, a possibilidade de ver sua produção caminhando com outras tradições de imagens.

 

Creio que faz sentido relacionar as suas cores à produção escultórica de Veio, um artista que Gonçalo possui em sua coleção. Nascido em Sergipe e com uma produção que articula as formas de madeiras, troncos e a cor, muito além do fardo de ser sempre lido pelo viés da “arte popular”, o modo como conjuga as cores e as texturas das madeiras que escolhe proporciona um diálogo muito interessante não apenas com a pintura de Gonçalo, mas também com os objetos tridimensionais em que ele explora as possibilidades da têmpera sobre madeira. Esses cruzamentos não precisam se manter geograficamente no Brasil, mas o quão potente não seria também caminhar junto com os objetos africanos também de sua coleção? Trazer a obra de Gonçalo Ivo para uma perspectiva mais global e menos eurocêntrica, mais da cultura visual e menos da história da arte, se trata de uma tarefa curatorial ainda por ser feita e capaz de proporcionar o encontro entre estandartes tribais da África, máscaras e sua larga experiência com a cor em diversas mídias e formatos.

 

Conhecer um pouco de seu fazer e de seu espaço de trabalho em uma tarde me fez relembrar daquelas palavras de meu professor. É preciso se manter imerso no nosso comprometimento para com isso que chamamos por arte. É preciso não ceder à fugacidade do veloz sistema da arte contemporânea que nos avassala em 2014. Tal qual a disciplina e insistência da pintura de Gonçalo Ivo, é necessário estar atento ao que nos rodeia e não necessariamente transformar todas as vivências em escrita, mas seguir a experimentar o mundo através da estesia para que sigamos a pensar uma pluralidade de narrativas para nossas existências e diferenças.

Se Gonçalo caminha com Maria Leontina, gostar-me-ia de caminhar um pouco com as suas formas rumo ao mundo desconhecido, mas fiel à minha meta textual diária.

 

 

 

De 03 de junho a 17 de julho.

Duas na Laura Marsiaj

28/fev

A próxima exposição da artista Renata De Bonis que será realizada na Galeria Laura Marsiaj, Ipanema, Rio de janeiro, RJ, diz respeito a uma experiência recente que a artista teve de residência – por alguns meses – na Islândia. Esse país, por vezes utilizado na cultura contemporânea como um ícone daquilo que poderia ser um espaço muito diferente do Brasil – gélido, pequenino e com paisagens espetaculares que ecoam os tons da pintura romântica do século XIX – foi recodificado pela experiência da artista. Ao observarmos sua trajetória, é possível associar sua produção à articulação entre pintura, paisagem e deslocamento. Ao observarmos sua nova série de trabalhos aqui reunidos na exposição de nome “Uma pedra por dia”, talvez possamos perceber uma nova nuance de sua prática, ou seja, de imagens que davam conta da amplitude de um espaço (natural ou doméstico), sua atenção agora se volta para detritos, pedras coletadas “no meio do caminho”. Esse pode ser considerado, então, um momento para que o público e a crítica apreciem as novas pinceladas inquietas dessa paleta que se repete, mas de nenhuma forma entedia o nosso olhar, afirma Raphael Fonseca.

 

 

Sobre a artista:

 

Renata De Bonis nasceu em 1984, em São Paulo, onde vive e trabalha. Formou-se no curso e Artes Plásticas da FAAP-SP em 2006. Embora resida em São Paulo, é na busca de espaços e temas distantes do meio urbano que a artista encontra suas principais referências pictóricas. Em suas telas, paisagens silenciosas e cores neutras nos remetem a situações de solidão e vazio existencial. Em busca de paisagens ermas para desenvolver seu trabalho, Renata viajou pelo mundo. Em 2009, passou uma temporada no deserto da Califórnia, frequentando parques nacionais como o de Joshua Tree. Em 2013 morou na Islândia buscando paisagens inóspitas para desenvolver suas pinturas. O uso opaco da tinta a óleo com cera e a paleta de cinzas lúridos estabelecem a melancolia e a ressonância lúgubre de suas imagens, equilibradas pela tensão sutil na passagem de tons, entre os planos da pintura.

 

 

No Anexo, a obra de Cristina Salgado

 

A exposição “A mãe contempla o mar“, de Cristina Salgado que será exibida no espaço anexo da galeria Laura Marsiaj a partir do dia 18 de março de 2014, é composta de objetos realizados entre 1999 e 2002 e desenhos inéditos produzidos entre 2001 e 2012. Mesmo sendo de séries com nomes e datas diferentes, são trabalhos surgidos a partir de uma mesma técnica, a modelagem em papier mâché, e um mesmo inventário simbólico, com suas superfícies rosadas, que imitam a pele clara com algum realismo. Mas é importante mencionar que, ainda que estejam presentes alguns elementos realistas – além da “pele”, sapatos e dedos com longas unhas vermelhas – essas obras se referem ao corpo psíquico, ou ao corpo traumático, o que talvez se possa dizer de todos os trabalhos da artista que se relacionam ao corpo humano. A presença de uma dimensão feminina na obra da artista é uma questão importante, ainda que não seja a única, nem excludente de outras possibilidades de produção de sentidos. Todas as obras, com exceção do Homem bebê (série Instantâneos), estariam relacionadas ao gênero feminino de modo um tanto enfático pela presença dos scarpins ou pelas unhas vermelhas.

 

Há dois desenhos mais recentes, de 2012, que retomam essas formas, agora com mais representação de volume, mas volumes moles, pesando sobre cadeiras. Em cada um deles está presente uma pequena paisagem marinha. Em um desenho de 2003, o único com uma figura humana mais convencional, também sentada em uma cadeira, está a mesma paisagem marinha. Nessas imagens, é como se a contemplação de uma representação do mar envolvesse uma introspecção – um olhar para um horizonte interno. Esses desenhos têm o título de La mer. Esse entrelaçamento de formas orgânicas, maternais e paisagens marinhas são, de certa forma, junto com a homofonia das palavras mãe e mar em francês, o motivo do título em português: A mãe contempla o mar. La mère regarde la mer funciona como uma circularidade – trabalhos antigos e recentes que volteiam por um mesmo território de vocabulário simbólico e formal.

 

 

De 18 de março a 23 de abril.