Uma Bienal é um grande desafio.

02/out

Quais são os rostos por trás das obras da 36ª Bienal?

Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa da Cidade de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam a 36ª Bienal Internacional de São Paulo até 11 de janeiro de 2026, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, Parque Ibirapuera, Portão 3, São Paulo, SP.

A arte é um exercício coletivo. São necessárias muitas mãos para construir uma exposição. Você já se perguntou quem é o artista e quem são as pessoas que trabalharam em cada obra? Este ensaio explora a categoria do retrato, destacando artistas, equipes de montagem, curadores e funcionários da Fundação Bienal.

Montar uma exposição da dimensão de uma Bienal é um grande desafio. Para registrar esse processo de dois meses, convidamos três fotógrafos a captar detalhes, rostos e momentos de criação da 36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática.

A segunda parte desse ensaio visual, realizada entre 18 de agosto e 04 de setembro no Pavilhão da Bienal e em ateliês de artistas, é assinada por Fe Avila. 36ª Bienal de São Paulo – Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática.

Curador geral: Bonaventure Soh Bejeng Ndikung / Cocuradores: Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Thiago de Paula Souza / Cocuradora at large: Keyna Eleison / Consultora de comunicação e estratégia: Henriette Gallus / Cocuradores adjuntos: André Pitol, Leonardo Matsuhei.

 

Crônica e sonho nas obras de Ismael Nery.

01/out

A curadoria de Tadeu Chiarelli revela um Ismael Nery atual, cujas reflexões sobre o eu e a ambiguidade ecoam no presente. 

Ismael Nery (1900-1934) atravessou o Modernismo brasileiro de modo tão intenso quanto breve. Poeta, pintor, desenhista obstinado e criador de uma filosofia própria – o essencialismo -, sua obra se organiza em torno de uma pergunta central, repetida em diferentes registros: quem sou eu? Essa interrogação aparece de forma insistente nos inúmeros autorretratos que Ismael Nery produziu ao longo da vida, nos quais a identidade é posta em jogo como fragmento, deslocamento e recomposição. A busca não é apenas pela imagem do indivíduo, mas pela sua dissolução em pares de opostos: corpo e espírito, sombra e luz, masculino e feminino. Não por acaso, os retratos que fez ao lado de Adalgisa Nery, companheira e musa, sugerem um processo de fusão – como se o casal fosse uma só entidade, ambígua e indivisa. 

A mostra “Ismael Nery: crônica e sonho”, com curadoria de Tadeu Chiarelli, na Danielian Galeria, Jardins, São Paulo, SP, reúne cerca de 60 obras, entre seis óleos e 56 trabalhos sobre papel – aquarelas, guaches, nanquins e grafites – que percorrem a produção do artista. Entre o cotidiano da metrópole carioca e o mergulho no supra-real, Ismael Nery constrói uma poética da ambiguidade: o duplo, a androginia, a autoimagem, a figura humana deslocada para territórios metafísicos. Nos anos 1920 e 1930, em diálogo com a visualidade art déco e as pesquisas cubistas, já apontava para questões identitárias e existenciais que hoje soam contemporâneas. Em seus últimos anos, marcados pela tuberculose, o corpo se torna tema e território: pulmões, traqueias e vasos sanguíneos transformam-se em paisagens interiores, ao mesmo tempo íntimas e universais. Sua produção, no entanto, não se restringiu às visualidades. Ismael Nery escrevia poemas e promovia encontros em sua casa, dissertando sobre Filosofia, Estética e Religião para amigos como Jorge Burlamaqui, Mário Pedrosa, Antonio Bento, Guignard, Jorge de Lima e Murilo Mendes – este último, decisivo na preservação de sua obra após a morte precoce do artista. 

“Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas, eu sou o que não existe entre o que existe, eu sou tudo sem ser coisa alguma, eu sou o marido e a mulher, eu sou a unidade infinita, eu sou um deus com princípio, eu sou poeta.” – Ismael Nery, trecho do poema Eu (1933). In: BENTO, Antônio. Ismael Nery. São Paulo: Gráfica Brunner, 1973. 

A obra de Ismael Nery voltou a ganhar destaque em 1969, na X Bienal de São Paulo, na “Sala de Artes Mágica, Fantástica e Surrealista”, um panorama da produção brasileira nesse campo em diálogo com criações internacionais. Nesse contexto, Nery recebeu uma sala retrospectiva dedicada exclusivamente a ele, reunindo 50 trabalhos em papel. Entre os trabalhos exibidos em 1969, presentes também nesta exposição, estão o nanquim Princípio da Divisão (1931), a aquarela Além do feto (1927) e o nanquim Figura n.º 9 (1929). A partir desse momento, a presença do trabalho de Ismael Nery passou a ressoar como influência e antecipação, ecoando posteriormente em artistas como Leonilson e em poéticas que investigam corpo, identidade e transcendência. 

O recorte curatorial proposto por Tadeu Chiarelli articula obras nas quais Ismael Nery observa a vida urbana de seu tempo com outras em que se entrega ao devaneio, ao sonho e à poesia. Nesse cruzamento, sua obra se revela não só como testemunho fundamental das experiências modernas do início do século XX, mas também como palco de reflexão sobre pulsões e identidades que seguem em debate na contemporaneidade. Durante a exposição, será lançado o catálogo com as obras expostas e textos críticos. 

Sobre o curador.

Tadeu Chiarelli é crítico, curador e professor, referência nos estudos sobre a arte moderna e contemporânea no Brasil. Foi diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo (2005-2009) e do Museu de Arte de São Paulo – MASP (2015-2017). Atuou também como chefe do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, onde é professor titular. Publicou livros e ensaios fundamentais sobre artistas como Ismael Nery, Geraldo de Barros e Nelson Leirner. Sua trajetória articula pesquisa acadêmica, curadoria e reflexão crítica sobre a arte brasileira. 

Sobre a galeria.

A Danielian Galeria nasce da experiência formativa de Luiz e Ludwig Danielian, moldada pelo convívio com a coleção de seus pais, dedicada à arte brasileira. Da primeira galeria em Copacabana, aberta quando ainda muito jovens, ao espaço de grandes dimensões inaugurado na Gávea em 2019, construiu-se uma trajetória de continuidade e expansão. Em 2024, a abertura da sede paulistana, na Rua Estados Unidos, consolida esse movimento. Entre a memória do acervo familiar e a inserção no circuito internacional, a galeria atua há vinte anos como mediadora entre gerações, preservando vínculos históricos e projetando novas presenças no campo da arte. 

Até 18 de outubro. 

 

Lançamento de Elisa Stecca e Willy Biondani.

29/set

Edição numerada permite revisitar a poética da natureza em uma experiência visual e tátil.

A instalação “Tangências/Alumbramento”, de Elisa Stecca e Willy Biondani, que desde julho ocupa a sala Maureen Bisilliat do Museu da Imagem e do Som (MIS), Jardim Europa, em São Paulo, se despede com um gesto inédito: o lançamento de uma caixa numerada, reunindo imagens das obras expostas e o catálogo oficial, permitindo ao público levar para casa uma experiência tangível e prolongada da mostra.

A exposição, que se destacou pela atmosfera imersiva e sensorial, transformou 260 m² em um espaço de encantamento. O percurso curvilíneo, sem cantos vivos, conduziu o visitante por 70 metros de obras têxteis transparentes, esculturas em vidro soprado espelhado, projeções de vídeo e fotografias, combinando diferentes linguagens e suportes para explorar a natureza e suas dimensões poéticas. A ambientação sonora, criada por Cid Campos, completou o cenário onírico, oferecendo pausas de silêncio e contemplação em meio à rotina urbana, enquanto a consultoria de arquitetura de Carlos Warchavchik garantiu uma circulação fluida e envolvente.

O lançamento da caixa é concebido como uma extensão participativa da experiência imersiva. O projeto gráfico, assinado por Pedro Cappeletti, organiza as imagens e folhas em diferentes papéis, permitindo ao espectador montar e explorar as peças de maneiras variadas, tornando-se coautor de sua própria interpretação. A tiragem é limitada a 140 unidades numeradas, reforçando a singularidade do objeto.

A mostra, que entrelaça utopia e razão, fluido e concreto, sonho e realidade, convida a refletir sobre a biodiversidade brasileira, inspirando-se na carta de Pero Vaz de Caminha e reinterpretando fauna e flora de forma fantasiosa e poética. A experiência propõe um mergulho do micro ao macro, em um tempo e espaço suspensos, evocando a contemplação, o encantamento a imaginação como motores do olhar artístico.

 

O retorno da obra de Ubirajara Ribeiro.

A Galeria Marcelo Guarnieri apresenta, entre 04 de outubro e 07 de novembro, a primeira mostra do artista Ubirajara Ribeiro (1930-2002) na unidade Jardins, São Paulo, SP. Arquiteto de formação e professor universitário, Ubirajara Ribeiro foi considerado um dos principais aquarelistas do país, embora tenha transitado com liberdade por variadas técnicas e linguagens ao longo de sua carreira.

O artista iniciou sua produção durante a década de 1960, atento às discussões da arte pop no Brasil, integrando, naquele momento, o grupo dos cinco arquitetos pintores com Maurício Nogueira Lima, Flávio Império, Sérgio Ferro e Samuel Szpigel. A partir de então, conservou, durante os quarenta anos seguintes, o interesse do arquiteto pelo desenho, entendendo a importância do traço na estruturação de qualquer uma de suas composições, fossem elas abstratas, figurativas, gráficas ou textuais. Desde a década de 1960 até os anos 2000, seus trabalhos circularam anualmente em mostras institucionais no Brasil e fora dele. A exposição, que reúne cinquenta obras realizadas entre as décadas de 1970 e de 2000, formalizadas em uma diversidade de linguagens tais como aquarela, desenho, pintura e colagem, marca um momento de retorno da obra de Ubirajara Ribeiro após vinte anos fora do circuito.

Uma de suas obras, no entanto, está em exposição permanente há sessenta anos. Trata-se do “Mural-Objeto”, feito em parceria com Sérgio Machado para o salão do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) no ano de 1965, e que pode ser visitado até hoje. Tendo a função de dividir os espaços do salão e da cozinha do antigo restaurante do edifício, o “Mural-Objeto” é composto por diversos objetos de madeira, vidro e ferro que remetem a elementos de construção e mobiliários como janelas, caixas, placas, fechaduras e adornos. Configurando-se como uma espécie de mosaico tridimensional que nos dá a impressão de estar diante do seu avesso, é uma peça que encontra ressonância na obra “Mapeinture”, de 1998, apresentada nesta exposição.

Ainda na década de 1960, Ubirajara Ribeiro desenvolveu uma investigação sobre o quadro-objeto, através da qual refletia sobre os elementos constitutivos do quadro, como a moldura, por exemplo, propondo um rearranjo estrutural que fazia a obra transitar entre o bi e o tridimensional. “Mapeinture”, de 1998, se apresenta como frente e verso simultaneamente, um trabalho que, na escrita da junção de duas palavras em francês (Ma peinture: Minha pintura), também pode ser lida como uma espécie de statement bem humorado do artista.

A palavra, aliás, foi um componente com o qual Ubirajara Ribeiro se relacionou em grande parte de sua produção. Leitor de autores do realismo mágico latinoamericano como Gabriel García Márquez, Julio Cortazar e Jorge Luis Borges, e ao mesmo tempo estudioso da cultura oriental e da técnica da caligrafia japonesa, o artista explorou em suas obras as qualidades gráficas, poéticas e filosóficas da escrita. Palavras inventadas, endereços, listas, anotações de horários, garatujas, rabiscos e mensagens passeiam por algumas obras apresentadas nesta exposição.

É o caso do conjunto da série “Nas Vitrines”, realizada durante a década de 1980. O artista apropria-se de sua coleção de postais provenientes de distintas partes do mundo para apresentá-los em nova montagem como dignos de atenção por suas qualidades gráficas e semióticas – o modo como a diagramação e a ilustração representavam elementos urbanísticos e culturais de uma cidade, por exemplo -, mas também pelo valor sentimental que a carta/correspondência carrega em sua materialidade, acessado na maioria das vezes pelo teor do texto e pelo desenho da caligrafia.

A ideia de trânsito e deslocamento também se manifesta em outras obras, como a série de aquarelas e desenhos que registram traçados urbanísticos, fachadas de edifícios ou estruturas de viadutos e que algumas vezes sinalizam endereços como a Boca do Lixo, o Jardim da Luz ou a igreja da Avenida Tiradentes.  Já na década de 1990 e 2000, podemos observar que esses traçados até então reconhecíveis, se libertam, adquirindo uma qualidade mais abstrata na fusão entre caligrafia e outros elementos gráficos como rabiscos, carimbos e até adesivos. Um certo vocabulário próprio que se forma na madurez da obra.

O papel, presença marcante nesta exposição, possuía, para Ubirajara Ribeiro, uma importância de múltiplos sentidos: “O papel se constitui em matéria viva e orgânica que por suas próprias características tem a potencialidade de vir a tornar-se em alguma coisa, inclusive obra de arte. Portanto, não é um mero suporte para grafismos ou camada pictórica, mas é capaz de formar um composto”. O artista questionava o desprestígio que o papel vinha adquirindo no circuito artístico a partir da década de 1980 devido à valorização dos grandes formatos e insistiu em relacionar-se com esse material dentro de sua produção mesmo diante desse contexto. Essa é uma postura que fica clara nas obras apresentadas nesta exposição, onde o papel é objeto e também sujeito. 

Ubirajara Ribeiro participou de importantes exposições individuais e coletivas ao longo de sua carreira, consolidando-se como um nome expressivo nas artes visuais brasileiras. Entre suas exposições individuais mais relevantes destacam-se a retrospectiva no MAC/USP em 1975, que marcou um momento de reconhecimento institucional, além de mostras no SESC Paulista e no Centro Cultural São Paulo. No circuito internacional, apresentou sua obra em 1993 na Sonoma University Art Gallery e na Biblioteca do Congresso dos EUA. No campo coletivo, participou da 11ª Bienal de São Paulo, de edições dos Salões Nacionais e Paulistas de Arte Moderna (onde recebeu prêmios de aquisição), e de exposições emblemáticas como “O Objeto na Arte – Brasil Anos 60″ e “Prospectiva 74″ (MAC/USP). Sua presença também foi notável em eventos internacionais como “10 Artistas Brasileños”, Museo de Arte Moderno de Bogotá e “A Cor e o Desenho no Brasil”, que circulou pela Inglaterra, Holanda, Portugal, Espanha, França e Itália.

 

Exibindo a arte da preservação e da cidadania.

26/set

nstituto Tomie Ohtake, Pinheiros, São Paulo, SP,  apresenta “A terra, o fogo, a água e os ventos – Por um Museu da Errância com Édouard Glissant”. A exposição reúne obras de 60 artistas das Américas, Caribe, Europa, África e Ásia, que conta com o patrocínio do Nubank, Mantenedor Institucional do Instituto Tomie Ohtake, da SKY, na cota Bronze, e da Fundação Norma y Leo Werthein, na cota Apoio. Concebida como um museu em movimento e dedicada à obra e ao pensamento do poeta, filósofo e ensaísta martinicano Édouard Glissant (1928–2011), a exposição integra a Temporada França-Brasil 2025 como um de seus principais destaques. A iniciativa de intercâmbio cultural é promovida pelo Instituto Francês e pelo Instituto Guimarães Rosa (Itamaraty), com o apoio de um comitê formado por 15 empresas: Engie, LVMH, ADEO, JCDecaux, Sanofi, Airbus, CMA CGM, CNP Seguradora, L’Oréal, TotalEnergies, Vinci, BNP Paribas, Carrefour, VICAT e SCOR. Com curadoria de Ana Roman e Paulo Miyada, a mostra é uma realização do Instituto Tomie Ohtake, correalização do Mémorial ACTe, do Édouard Glissant Art Fund e do Institut Tout-Monde, além de parceria com o CARA – Center for Art, Research and Alliances e apoio institucional do Institut Français.

Parte da pesquisa de longo prazo do Instituto Tomie Ohtake em torno da produção de memória, a exposição dá sequência a iniciativas recentes como a mostra Ensaios para o Museu das Origens (2023) e o seminário “Ensaios para o Museu das Origens – Políticas da memória” (2024), que reuniu representantes de museus, arquivos e comunidades em um intenso debate sobre preservação e cidadania. Com seu título inspirado na antologia poética La Terre, le feu, l’eau et les vents (2010), organizada pelo escritor martinicano, a mostra ensaia o que seria um “Museu da Errância”. 

Errância é uma vivência da Relação: recusa filiações únicas e propõe o museu como arquipélago – espaço de rupturas, apagamentos e reinvenções sem síntese forçada. Contra genealogias rígidas, propõe-se uma memória em trânsito, feita de alianças provisórias, traduções e tremores – um processo institucional movido pelo encontro entre tempos, territórios e linguagens. Ainda que Glissant tenha deixado fragmentos de sua visão para um museu do século 21, não chegou a concretizá-lo. A curadoria imagina como poderia ser esse Museu da Errância em uma mostra de múltiplas camadas e conexões inesperadas entre obras, documentos e paisagens. As duas ideias-chave da organização da montagem da exposição são a palavra da paisagem e a paisagem da palavra, concebidas a partir da concepção de Glissant de “parole du paysage”. Como apontam em texto, “No primeiro caso, o território infiltra-se na fala; no segundo, a linguagem se projeta no espaço, convertendo signos, letras e códigos em relevo, clima ou correnteza”. Para o poeta, a paisagem não é apenas cenário externo, mas força ativa que molda memórias, gestos e linguagens. Além disso, estão presentes em frases, manuscritos e entrevistas do autor outras ideias como Todo-mundo, crioulização, arquipélago, tremor, opacidade, palavra da paisagem e aqui-lá. Para a curadoria, que trabalhou em contínuo diálogo com Sylvie Séma Glissant, trata-se de um arco de assuntos interligados com profunda relevância no mundo contemporâneo, que mais uma vez se vê permeado por discursos e medidas de intolerância perante o diverso e incapaz de criar canais de escuta dos Elementos naturais e das paisagens ameaçados de destruição.

É nesse horizonte que se apresenta, pela primeira vez no Brasil, parte da coleção pessoal reunida por Glissant e atualmente preservada no Mémorial ACTe, em Guadalupe. O conjunto inclui pinturas, esculturas e gravuras de artistas com quem o pensador conviveu e sobre os quais escreveu, como Wifredo Lam, Roberto Matta, Agustín Cárdenas, Antonio Seguí, Enrique Zañartu, José Gamarra, Victor Brauner e Victor Anicet, entre outros. São artistas de crescente reconhecimento internacional, que viveram trajetórias de diáspora e imigração, e produziram em trânsito entre línguas, linguagens, paisagens e histórias múltiplas. Trata-se de um valioso recorte da produção artística da segunda metade do século 20, que lida com o imaginário, a figuração, a linguagem e as grafias como recursos carregados de traços de memória, identidade e invenção.

À coleção de obras somam-se documentos, cadernos, vídeos e fragmentos de textos e entrevistas de Glissant, igualmente inéditos. Entre eles, destaca-se o Caderno de uma viagem pelo Nilo (1988) – com notas e desenhos em fac-símile – que vai além do registro de viagem para se tornar um exercício poético-filosófico, no qual o autor questiona a ideia de uma origem única e propõe a noção de origens múltiplas. A mostra apresenta também trechos da extensa entrevista concedida em 2008 a Patrick Chamoiseau, escritor martinicano e parceiro intelectual de Glissant, da qual resultou o monumental Abécédaire. O público poderá conferir dezessete verbetes selecionados pela curadoria, exibidos em seis monitores distribuídos pela exposição. Esses materiais revelam como o poeta elaborava suas ideias no cruzamento entre escrita, oralidade e imagem. Este extenso e rico acervo é apresentado em diálogo com trabalhos de mais de 30 artistas contemporâneos das Américas, Caribe, África, Europa e Ásia – nomes como Chico Tabibuia, Emanoel Araújo, Federica Matta, Frank Walter, Julien Creuzet, Manthia Diawara, Melvin Edwards, Sheila Hicks, Rebeca Carapiá, Pol Taburet, Tiago Sant’Ana, entre outros – que convocam o público a experimentar, de forma sensorial, o entrelaçamento entre paisagem, linguagem e memória. Nas palavras dos curadores: “Entre as peças selecionadas há partituras visuais que serpenteiam pelas paredes como cordilheiras, vídeos em que frases viram espuma marítima e instalações sonoras que transformam poemas em ar e vibração”. Parte dessa proposta inclui ainda obras especialmente comissionadas para a exposição, realizadas por Aislan Pankararu, Pedro França e Rayana Rayo, do Brasil, e por Arébénor Basséne, Hamedine Kane, Nolan Oswald Dennis, Pol Taburet, Kelly Sinnapah Mary e Tarik Kiswanson, de diferentes contextos internacionais, ampliando as vozes e perspectivas que atravessam a mostra.

Está programado o lançamento de um catálogo, em português e em inglês – cuja edição em inglês está sendo coeditada pelo CARA – que reúne textos das instituições parceiras, ensaio curatorial de Ana Roman e Paulo Miyada, verbetes sobre os artistas participantes, além da transcrição de trechos do Abécédaire. O volume inclui também o manuscrito Caderno de uma viagem pelo Nilo, de Glissant, assim como legendas técnicas e ficha detalhada da exposição. Em novembro, no Instituto Tomie Ohtake, a programação se completa com um seminário com a participação de alguns dos artistas da exposição e com importantes intelectuais que dialogam com a obra de Glissant.

O projeto contemplou, ainda, uma residência artística na Martinica, realizada em agosto de 2025, com a participação de Rayana Rayo e Zé di Cabeça (José Eduardo Ferreira Santos). Os frutos dessa vivência, que conta com o apoio da Coleção Ivani e Jorge Yunes e do Instituto Guimarães Rosa, darão origem a intervenções em diálogo com a coleção de arte africana do MON – Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, PR. O evento também integra a Temporada França Brasil. No primeiro semestre de 2026, a exposição tem itinerância prevista para Nova York, no CARA – Center for Art, Research and Alliances.

Artistas participantes

Agustín Cárdenas, Aislan Pankararu, Amoedas Wani e Patrice Alexandre, Antonio Seguí, Arébénor Basséne, Cesare Peverelli, Chang Yuchen, Chico Tabibuia, Eduardo Zamora, Emanoel Araújo, Enrique Zañartu, Ernest Breleur, Etienne de France, Federica Matta, Flavio-Shiró, Florencia Rodriguez Giles, Frank Walter, Gabriela Morawetz, Geneviève Gallego, Gerardo Chávez, Hamedine Kane, Irving Petlin, Jean-Claude Garoute (Tiga), José Gamarra, Julien Creuzet, Kelly Sinnapah Mary, M. Emile, Manthia Diawara, Mélinda Fourn, Melvin Edwards, Minia Biabiany, Nolan Oswald Dennis, Öyvind Fahlström, Pancho Quilici, Paul Mayer, Pedro França, Pol Taburet, Raphaël Barontini, Rayana Rayo, Rebeca Carapiá, Roberto Matta, Serge Hélénon, Sheila Hicks, Sylvie Séma Glissant, Tarik Kiswanson, Tiago Sant’Ana, Victor Anicet, Victor Brauner, Wifredo Lam, Zé di Cabeça (José Eduardo Ferreira Santos). 

Até 25 de janeiro de 2026.

 

Livro e exposição de Raymundo Colares.

24/set

No dia 27 de setembro, a partir das 11h, a Almeida & Dale, Rua Caconde, 152, Jardins, São Paulo, SP, promove o lançamento de “Raymundo Colares: Pista Livre”, publicação concebida por ocasião da exposição homônima, em cartaz na galeria até 25 outubro.

Organizado pela curadora Ligia Canongia, o livro amplia o escopo da mostra ao reunir reproduções de obras, excertos dos diários de Raymundo Colares, textos críticos e uma cronologia detalhada da carreira do artista. 

O volume apresenta capítulos dedicados a reproduções de pinturas, desenhos e Gibis – a célebre série de livros -objeto produzidos com papel recortado. Reúne ainda um ensaio de Ligia Canongia, que sublinha a posição singular de Raymundo Colares entre o Construtivismo e a Pop Art no Brasil, e um artigo de Felipe Scovino, que examina sua obra a partir da tensão entre Modernidade e subdesenvolvimento no contexto brasileiro. A publicação se completa com uma cronologia abrangente e a edição inédita de páginas de cadernos do artista, que marcam registros íntimos, reflexões poéticas e fragmentos do cotidiano. 

A exposição “Raymundo Colares: Pista Livre”, com curadoria de Ligia Canongia, marca a primeira mostra dedicada ao artista na capital paulista nos últimos quinze anos, sucedendo a realizada no MAM São Paulo, em 2010, sob curadoria de Luiz Camillo Osório.

Raymundo Colares manteve diálogo com o construtivismo brasileiro e suas raízes históricas, embora já sensível ao ideário pop, por sua estreita relação com as histórias em quadrinhos e o cinema. Os trabalhos de Mondrian, Duchamp e dos futuristas italianos foram cruciais em sua formação, mas a obra indiciava sintomas da iconografia urbana e da exuberância cromática da pop art. O universo popular em Colares convergiu para a figura do ônibus, um ícone-síntese do dinamismo nas grandes metrópoles. A experiência perceptiva da multiplicação e da deformação das coisas em movimento, que informara o cubismo e outros movimentos modernos, tornou-se centro de seu interesse. O artista tentava, pois, congregar planos disjuntivos, fatias de espaço que pareciam se colidir, imagens captadas aos estilhaços, sem a nostalgia da perspectiva ou de uma ordem. Ainda assim, suas pinturas são estruturadas, articuladas, e a complexidade desse jogo é que constitui o desafio da obra. Para ele, interessava fragmentar e reconstruir esses fragmentos de forma pulsante e errática, trazendo à luz uma das questões-chave de sua trajetória: a ideia de tempo, visualmente enunciada em planos multidirecionais e em velocidade. Raymundo Colares compreendeu que a questão do movimento, em última instância a questão do tempo, havia arremetido a experiência da pintura para além da estabilidade que conhecera no passado histórico, respondendo aos avanços da ciência e ao viver moderno. Pressentiu que essa  atualização se prolongaria na era contemporânea, e que os efeitos da máquina seriam intensos e irreversíveis, mesmo não tendo vivenciado o mundo digital de nossos dias.

Ligia Canongia.

Questões que tensionam nosso tempo.

19/set

m 2025, a Galeria TATO, Barra Funda, São Paulo, SP,  celebra 15 anos de atuação na arte contemporânea brasileira. Mais do que uma data, esta trajetória reafirma um compromisso: sustentar espaços de risco e reflexão, em diálogo com artistas e questões que tensionam nosso tempo.

É nesse contexto que o projeto Dark Room retornou em 30 de agosto com a individual Pegação Rupestre, de Marcelo Salum, com curadoria de Leonardo Maciel e Paulo Cibella.

Se, nas cavernas, o breu guardava corpos em rituais de prazer coletivo, hoje, nas cidades, o escuro acolhe outras formas de encontro e resistência. Em Pegação Rupestre, Marcelo Salum investiga essa continuidade: desejo como arqueologia, cruising como memória ancestral. Grafismos que desafiam o decoro e corpos que emergem da penumbra convocam o visitante a sentir, tocar, decifrar. A mostra propõe um ambiente seguro e crítico para pensar corpo, desejo e sexualidade, tensionando essas temáticas com questões sociais e políticas que atravessam nosso tempo.

Ao reunir obras que exploram os limites entre intimidade e público, sensibilidade e confronto, o Dark Room amplia a missão da TATO em ser um lugar de escuta, troca e pensamento sobre os desafios e transformações da sociedade contemporânea.

Até 18 de outubro.

 

Exposição evocando memórias e emoções.

18/set

Pinturas oníricas inéditas do artista Sergio Lopes serão apresentadas na Sergio Gonçalves Galeria, Jardim América, São Paulo, SP. Trata-se de uma fronteira tênue entre palavra e imagem. As obras de Sergio Lopes que serão expostas na individual “I’m a Book” a partir do dia 24 de setembro, conduzem o espectador em uma imersão pelos extratos narrativos do artista. Sua arte propõe uma leitura visual que ultrapassa a simples imagem, evocando memórias, emoções e, sobretudo, a sensação íntima de abrir uma nova história – tal como se desfolha um livro.

 Em cada tela, a figura humana, o traço, os vazios e os gestos pictóricos se organizam como páginas de uma narrativa sensorial. A curadoria foi feita pelo artista em parceria com Sergio Gonçalves, que selecionaram cerca de 15 obras recentes e inéditas em acrílica sobre tela, além de esculturas que reproduzem lápis em vários tamanhos e estarão pendendo do teto, compondo uma instalação.

Com grande domínio da figura humana, influências renascentistas e um olhar atento à matéria, Sergio Lopes construiu uma expressiva trajetória artística passando pela série Clowns, pela poética das Cartas de Amor, até suas representações de animais e cenas com forte carga simbólica. Cada pintura é uma página viva, aberta ao olhar, à emoção e à interpretação. A experiência expande o olhar e ressoa além do visual, criando um diálogo entre  quem vê e quem sente.

Sobre o artista.

Sergio Lopes nasceu em Caxias do Sul, RS, 1965,  artista plástico cuja obra expressa uma síntese rara entre pesquisa conceitual, refinamento técnico e sensibilidade estética. Formado em Educação Artística pela Universidade de Caxias do Sul, também é docente nas disciplinas de Desenho, Pintura e Criatividade. Sua produção transcende fronteiras regionais e tem presença em importantes coleções e exposições no Brasil e no exterior.

Até 11 de outubro.

Uma posição singular na arte brasileira.

17/set

Emmanuel Nassar exibe “Este Norte 2025″, sua nova individual na Almeida & Dale, Vila Madalena, São Paulo, SP.

Com texto crítico de Victor Gorgulho, a exposição apresenta obras criadas desde a década de 1980 até trabalhos inéditos, traçando um panorama instigante da produção de Emmanuel Nassar. São pinturas, objetos e peças da série “Trapioca” que representam o vocabulário visual construído pelo artista ao longo de quatro décadas.

A exposição ressalta a posição singular – quase paradoxal – que Emmanuel Nassar ocupa na arte brasileira, ao articular signos das culturas populares e de massas do Norte do Brasil a vertentes como a Pop arte e o Concretismo.

Exposição resgata memórias da ditadura.

Exposição do fotógrafo Gustavo Germano homenageia desaparecidos políticos e propõe reflexão sobre os impactos da violência de Estado.

Até 08 de outubro, o Arquivo Histórico Municipal de São Paulo (AHM), Bom Retiro, exibe a exposição Ausências Brasil, do fotógrafo argentino Gustavo Germano. A mostra, realizada em parceria com o Núcleo de Preservação da Memória Política (NM), traz um olhar sensível e contundente sobre os desaparecidos políticos durante a ditadura civil-militar brasileira (1964–1985). A proposta é confrontar o público com a ausência transformada em imagem. As fotografias de Gustavo Germano recriam retratos familiares, justapondo cenas do passado a registros atuais marcados pelo vazio da pessoa que foi retirada pela violência do regime. O projeto nasceu na Argentina, a partir da história pessoal do autor: seu irmão, Eduardo Raúl Germano, foi sequestrado e desaparecido em 1976. Anos mais tarde, expandiu-se para outros países atingidos pela Operação Condor, até chegar ao Brasil, onde a versão atual reúne 12 histórias de desaparecidos políticos, de diferentes regiões do país.

Além das imagens, a exposição contará com visitas mediadas, rodas de conversa com ex-presos políticos e a exibição do documentário O Dia que Durou 21 Anos, de Camilo Tavares. Para a museóloga Kátia Felipini, diretora técnica do Núcleo Memória, a iniciativa é também um ato de reparação: “Cada vez que a gente apresenta essa exposição, é uma forma de reparar essas famílias”. O educador e historiador César Novelli ressalta em comunicado a atualidade da discussão: “A história do Brasil é pautada na violência. Os vínculos entre os crimes da ditadura e os desaparecimentos de hoje são sinais da impunidade permitida após a redemocratização”. A entrada é gratuita, e a programação completa inclui debates, formações para educadores e atividades culturais, sempre voltadas para fortalecer a memória democrática e refletir sobre as marcas da repressão no presente.

Por Felipe Sales Gomes.