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AGENDA CULTURAL

Bruno Miguel na Kogan Amaro

 

A Galeria Kogan Amaro, São Paulo, SP, exibe de 05 de junho até 17 de julho, “A Beautiful Image”, a nova exposição de Bruno Miguel.

 

 

 

Texto de Ulisses Carrilho

 

 

Smile at least / You can’t say no to the Beauty and the Beast

                                                                                David Bowie

 

 

Palavras ou imagens são sempre provocações. O inconsciente não cessa de se inscrever: o fabulado e o imaginado se fazem presentes a cada salto dado pelo sujeito. No fluxo contrário, o real não se deixa inscrever – esgueira-se, escapa e acontece no mundo. Faz-se perceber na vida da matéria, apresenta-se como fenômeno sentido. Na pintura de Bruno Miguel, entre os códigos dos quais lança mão e as fartas doses de cor, em tinta e objetos, sobre a superfície de suas pinturas, há também uma dupla ocorrência: de maneira flagrante, percebemos um artista que apresenta hipóteses à história da pintura e, concomitantemente, a um regime das imagens que não acontece apenas no entorno do objeto de arte, mas no campo ampliado das visualidades. O título da mostra, tomado por empréstimo da inscrição na pintura que abre a exposição, deixa essa relação evidente: falemos sobre a imagem.

 

 

Muito embora o artista perambule por referências biográficas em seu trabalho, essa vontade não é memorial, não resulta do desejo de versar sobre um mundo particular do indivíduo. Parece lembrar que a matéria primeira da arte se constitui justamente por um salto entre uma imagem que é criada e outra que é percebida. Bruno Miguel é professor na Escola de Artes Visuais do Parque Lage há mais de uma década e é flagrante o seu interesse em elaborar uma pesquisa poética que investiga a formação de um certo olhar: o artista busca apurar uma sensibilidade em relação às imagens que já estão no mundo. Em outra oportunidade, seria interessante apurar essa hipótese à luz de sua série “Marina Ajuda Bruno”, que merece atenção e oportunidade de exposição, pois levanta uma discussão urgente que reajusta não apenas a ideia de função na arte, mas também a problemática noção da qualidade. Será que, frente a uma sociedade corrompida pelo excesso, pela saturação, pelo espetáculo e pela excludente e elitista ideia de que haveria, a priori, um “bom gosto”, as visualidades não apuradas pelo sistema artístico mereceriam menor oportunidade de investigação?

 

 

No discurso do artista, nota-se insistentemente ganas de versar sobre um mundo externo a ele: sobre imagens que o circundam, imagens de objetos que coleciona, mas que estão também impregnadas no seu corpo. Tais imagens não são convocadas pelo artista por um simples interesse de representação das mesmas no campo pictórico. Bruno Miguel explora, por meio da pintura, as imagens de um mundo fraturado pela desintegração; acelerado pelo entretenimento; enganado pela promessa da globalização.

 

 

Muitos dos objetos impregnados nas camadas de tinta sobre tela ou nas resinas que aludem às diferentes configurações de plásticos-bolhas são objetos de consumo: patches comprados em larga quantidade, indiscriminadamente, em plataformas de compra na Internet. De origem militar, usados desde os anos 1800 na Inglaterra, para fins bélicos, os patches começaram a se popularizar na década de 1930, como forma de identificar exércitos e patentes ­– questões da ordem de pertencimento. No final dos anos 1950 e nos primeiros anos da década de 1960, foram adotados por “adolescentes rebeldes” na baila do movimento MOD, que teve origem em Londres, na Inglaterra. O símbolo usado pelo movimento, um alvo, é originário do símbolo usado nos aviões da RAF, braço aéreo das forças armadas do Reino Unido, durante a Segunda Guerra Mundial. E foi assim que eles foram introduzidos na indumentária do rock’n’roll, onde se popularizaram na cultura popular. Rapidamente os patches começaram a ser veículos para expor ideias, posição política e amor por bandas. Os pequenos objetos são espécies de escudos que operam culturalmente, gerando pertencimento e denotando ou confrontando identificações. Tais emblemas são partes fundamentais dos trabalhos que vemos na mostra.

 

Em “Against Interpretation”, livro de Susan Sontag, no seu ensaio “One Culture and the New Sensibility”, encontro linhas em ricochete à profusão dos tais caminhos concomitantes que dão corpo às pinturas de Bruno Miguel. A arte é compreendida como um instrumento que modifica nossa consciência e organiza novos modos de sensibilidade. Viveríamos, segundo a autora, uma asfixiante pressão pela interpretação, que aniquila nossa sensibilidade a partir de uma visão causal, lógica, reacionária e interpretativa do mundo. Tal ideia cientificista, segundo algumas das hipóteses de Sontag, invadiram o campo artístico-literário na modernidade. Como resistir à lógica e confiar naquilo que sente o indivíduo perante um estímulo? É possível superar a ideia de gosto e gozar com o que o corpo vê, percebe e sente?

 

 

Na série de pinturas que vemos, o artista oferece, em telas, campos cromáticos repletos de referências a um mundo que, apesar de não ser externo à arte, é frequentemente subestimado por artistas, em nome de uma sofisticação e de um apuro intelectual. Com sorte, a pintura de Bruno Miguel insubordinadamente resiste a essa ideia, instaurando um campo onde é possível elaborar outras hipóteses, outrora já afirmadas pelos teóricos da cultura: uma ideia de cultura mais generosa, encharcada de complexidade, pouco binária. As várias manifestações da cor e da forma eclodem na tela sem a pretensão de confirmar a tradição, mas de atualizar os problemas nela elaborados. Suas estratégias artísticas, no entanto, também não desconfiam da pintura. Ao contrário disso, o artista ostensivamente confia nesse procedimento.

 

 

Não à toa, este texto começa pela inscrição e pela irrupção daquilo que não se deixa inscrever. Nas inscrições pintadas pelo artista, ele constitui imagens. As palavras apresentam-se como elementos visuais que integram, de maneira fundamental, a composição dos trabalhos. Sontag, nos anos 1960, colaborou para a compreensão de que a arte produzida naquele momento valia-se de elementos produzidos pela sociedade de consumo menos por um simples interesse visual, mas sobretudo para criar a oportunidade de que nós, o público, possamos reconfigurar nossos próprios critérios preconcebidos a respeito do que pode ou não ser considerado arte. Não há outro modo de terminar este texto: mas, afinal, o que é a beautiful image?

 

 

 Sobre o artista

 

 

Nasceu no Rio de Janeiro, 1981.Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Bruno desenvolve desde 2004 sua pesquisa em torno da construção e da representação da paisagem na contemporaneidade, atuante em diversas linguagens, o mesmo elege a pintura como tema principal de sua rotina obsessiva de produção. Nos últimos anos as questões acerca da paisagem começaram a dar lugar a uma investigação maior da pintura como linguagem e suas interfaces na vida cotidiana contemporânea. Mas acima de qualquer retórica que Bruno desenvolva para justificar suas opções, a verdadeira força de sua pesquisa está no trabalho. Não na obra em si, mas na labuta do atelier, onde sua curiosidade e inquietação fazem com que sua pintura se mantenha em transformação. Onde suas compulsões buscam erros ansiosos por soluções imprevisíveis, tão generosas que se escondem por trás do deslumbre banal das imagens fáceis. Sua pesquisa é um tipo de pós-pop periférico, sempre relacionando alta e baixa cultura. Uma maquiagem vulgar e exuberante que superficialmente disfarça sua condição de eterna busca pela beleza. Não da pintura, mas do pintar.

 

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