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AGENDA CULTURAL

Isidro Blasco no Brasil

A SIM galeria, Curitiba, PR, exibe fotos de Isidro Blasco apresentadas por Tatiana Flores. Em seus trabalhos o fotógrafo desconstrói paisagens de cidades conhecidas como Nova Iorque, São Paulo, Sidney, Helsinque e Curitiba.

 

Isidro Blasco: Construção, Reconstrução, Desconstrução

por Tatiana Flores

 

A prática artística de Isidro Blasco desafia qualquer categorização dentro dos parâmetros convencionais. Em diferentes momentos, pode ser considerada como arquitetura, fotografia, ou escultura, e pode ser todas essas coisas simultaneamente ao mesmo tempo não sendo nenhuma delas. Ainda assim, é muito ligada a materiais recorrentes – suportes de madeira, imagens fotográficas – para pertencer à categoria amorfa descrita por Rosalind Krauss como a “condição pós-suporte.” Também nem sempre é confortavelmente categorizada como arte de instalação, particularmente na série de trabalhos baseados em paredes, tais como a série Planets – Planetas (2014) ou os vídeos. A obra do artista não deixa de ser marcada por consistência e coerência, mantendo um diálogo crítico produtivo com ambos os suportes tradicionais e a história da arte. Em vez de defender perspectivas individuais ou narrativas lineares, Blasco desmonta tais visões totalizantes de uma maneira análoga à abordagem teórica conhecida como desconstrução, tipicamente associada com a literatura. Contrariando a idéia de ilusão sugerida pela imagem singular ou de um ambiente tradicionalmente construído, seu trabalho argumenta contra um corpo unitário de conhecimento em favor da revelação da experiência contemporânea enquanto descontínua e fragmentada. Ele o faz, ironicamente, através de uma prática de construção, quer de fotografias compostas de arquitetura exterior e interior em suportes de madeira irregulares e complexos, ou de esculturas arquitetônicas baseadas em fotografias.

 

A desconstrução, desenvolvida enquanto teoria pelo filósofo francês Jacques Derrida, é sucintamente explicada pelo teórico de arte americano Stephen Melville como “uma prática de leitura, uma maneira de entender as coisas antagonisticamente a elas mesmas, ou às suas margens, de modo a mostrar algo sobre como elas são estruturados pelas próprias coisas que agem para excluir de si mesmas e então, mais ou menos sutilmente, para deslocar a estrutura dentro da qual essas exclusões parecem plausíveis ou necessárias.”¹ Vez por outra, essas características aparecem na arte de Blasco, bem como em seus escritos. Na apropriadamente intitulada Deconstructed Laneways – Vielas Desconstruídas (2011), uma obra de arte pública, ele criou uma imagem de construção espelhada de uma interseção em Sydney, Austrália, que, se visto de um ponto específico, faz com que a rua pareça continuar até encontrar a fachada de um prédio próximo. Uma vista de qualquer outro ângulo revela que a construção é uma ilusão. Isto é especialmente verdadeiro quando a imagem composta é vista de lado, o que expõe a marca registrada de Blasco: andaimes de madeira segurando a miragem fotográfica. Esta estrutura às margens desafia o espectador a questionar a distinção entre realidade e aparência. Embora suponha-se que as fotografias sejam um indicativo do real, Blasco mostra que elas são apenas construções que mantém-se a partir de um único ponto fixo. Com o menor movimento, a ilusão desaparece, e a pretensão de “verdade” fotografica é minada por completo. Um efeito similar acontece na instalação Seeing Without Seeing – Ver Sem Ver (2000), que usa a arquitetura para questionar a coerência espacial. Aqui, o artista projetou imagens de dois cantos do espaço, mapeou-os com linhas e recriou o espaço da sala usando madeira compensada pintada de branco para as paredes e teto e cinza para o chão. O resultado final foi tal que a instalação encaixava-se com a sala apenas a partir de um único ângulo. Qualquer outro ponto de vista revelava uma “estrutura deslocada”, empregando a terminologia de Melville, gerando uma experiência visual e espacial confusa.

 

No texto “Quando Acordei” (1996), que corresponde a uma escultura arquitetônica de mesmo título, Blasco descreve seu sonho de uma casa que é completamente incoerente, “uma casa falsa, como aquelas em um set de filmagem.”² Então, inexplicavelmente, uma segunda construção começa a se materializar, e “imagens estáticas a partir de meus próprios olhos, todas colocadas juntas, de alguma forma fazem isso acontecer.

 

Devido a algum fenômeno desconhecido, as paredes da casa de set de filmagem começaram a se quebrar e separar, deixando amplas aberturas para o exterior… Todos esses painéis ao meu redor pareciam seguir uma narrativa seqüencial, saindo da parede como que em um saliência. Mas logo ficou claro que a divisão entre os painéis separados foi quase toda apagada, provavelmente por causa do fenômeno de impressão retinal. Eles estavam misturados, sobrepostos uns aos outros. Tudo parecia agora mais, de algum modo, com “Os Portões do Inferno” de Rodin, onde não se pode ver uma narrativa coerente.” Nas imagens correspondentes, a casa é um amálgama de painéis, um polígono aberto complexo sem teto ou paredes ou chão completos, sem fachada visível, como uma pintura cubista feita em um edifício. Tendo em conta que a casa é o espaço seguro final, fornecendo abrigo e conforto, é compreensível que o sonho do artista (mais como um pesadelo) seja tão desconcertante. A narrativa sequencial sugerida por uma estrutura com quatro paredes, um teto, portas e janelas, dá lugar a desarticulação e incoerência. Traz à vida as palavras de Gayatri Chakravorty Spivak ao descrever a abordagem de Derrida: “uma certa visão do mundo, da consciência, e da linguagem tem sido aceita como a correta e, se as minúcias de tal visão forem examinadas, uma imagem um tanto quanto diferente (que é também uma não-imagem, como veremos) emergirá.”

 

Descrever as obras fragmentadas e basedas em arquitetura de Blasco como “não-imagens” é certamente apto, não só porque elas negam a coerência estrutural da imagem (neste caso, a casa), mas também porque, em sua essência, existe uma crítica da visão monocular da fotografia tradicional e da câmera como uma máquina de fazer fotos que cria mecanicamente perspectivas pontuais. Amarrado à história da pintura ocidental como a busca da ilusão ótica, finalmente alcançada no Renascimento e aperfeiçoada ao longo dos séculos seguintes, tanto a pintura em perspectiva quanto a fotografia convencional transformam um espaço tridimensional em um suporte bidimensional e também oferecem uma visão do mundo como um todo e inteligível. Ao fotografar edifícios e reconstruí-los de acordo com os limites espaciais de fotografia, Blasco demonstra que isso não é verdade. As casas reconstituídas – se elas sequer podem ser chamados assim, já que elas são, de fato, desconstruções – em tais obras como Just Before – Logo Antes (2004), Father’s House – Casa do Pai (1998), e em Quando Acordei, são apenas fragmentos planares de paredes, tetos e pisos, com uma aparência precária. Fazendo-nos questionar as próprias estruturas que nos cercam, não apenas travam uma ataque à fotografia, mas também contra nossa própria percepção visual e espacial, desafiando-nos a aceitar o mundo como indecifrável. A caracterização da perspectiva por Melville lança luz sobre as questões insolúveis colocados pela artista: “Nossos usos comuns da palavra “perspectiva” estão estranhamente divididos: nós a reinvindicamos, por um lado, como aquilo que nos dá o mundo mais ou menos como ele o é, e, por outro, como um nome para aquilo que nos separa um do outro. Você tem a sua perspectiva e eu tenho a minha – e ainda assim a representação de perspectivas tem uma reivindicação sobre a verdade pública tão boa quanto qualquer outra que possamos imaginar. Algo desta divisão certamente informa periodicidade, muitas vezes argumentos estranhamente sem sentido sobre se perspectiva é ‘natural’ ou ‘convencional’ – a moral desses argumentos pode ser somente que a perspectiva se choca com incoerências profundas em nossa interpretação normal dessas palavras, o que seriam então também incoerências profundas em nossa compreensão de como nós encontramos um perante o outro.”4 No seu momento mais provocante, Blasco confronta-nos com este mesmo paradoxo, apontando repetidamente para a ilusão da coerência.

 

Embora o artista postule questões difíceis, seu trabalho também pode ser leve, caprichoso, e bem-humorado. Planets é um caso a ser analisado, uma série de relevos fotográficos em formatos circulares na parede, que retratam vistas das cidades geralmente tiradas dos prédios mais altos. Estes trabalhos encantadores e lúdicos consistem em fotografias de edifícios montadas em painéis de madeira em torno de um núcleo central aberto e irregular. Eles são a antítese de pinturas renascentistas tais como A Cidade Ideal (ca. 1480-1484) de Fra Carnevale e a obra de autoria desconhecida A Cidade Ideal (ca. 1480) da Galeria Nacional da Marche em Urbino, obras conhecidas que fazem uma analogia entre perspectiva pontual e utopia urbana, colocando edifícios de inspiração clássica no ponto de fuga. O centro de Blasco nesta série é, pelo contrário, literalmente o espaço vazio, e como tal, os seus “planetas” não nos apresentam “nenhuma identidade estável, nenhuma origem estável, nenhum fim estável”, correspondente à caracterização do método de Derrida por Spivak.5 Isto não quer dizer que cada uma das cidades representadas na série Planets careça de características únicas; pelo contrário, Alicante exibe pastéis calmantes, Helsinki é uma sinfonia de azuis e São Paulo apresenta retângulos largos, principalmente em cinza, pontuados por manchas vermelhas. Elas são todas visualmente diferentes, e isso não é, então, uma série de obras que argumenta um ponto sobre os efeitos homogeneizadores da globalização. A diversidade arquitetônica, topográfica e climática é o que faz com as obras de Planets tão convincentes como objetos distintos. Embora seja evidente que o formato circular marca estes relevos como não tendo começos nem fins, a falta de identidade estável, em última análise, tem a ver com o seu centro vazio. O prédio de onde foram tiradas estas fotografias foi anulado, e assim sendo o centro, que nas pinturas renascentistas marcou uma base sólida que significa coerência e unidade, aqui é desestabilizado, simbolizando incapacidade de conhecimento. O prazer visual que podemos receber dessas obras – que pode levar-nos a imaginar a nós mesmos como turistas catedráticos flutuando acima de cidades que nunca poderemos conhecer em pessoa – é rebatida pelo reconhecimento da construtividade e materialidade dos próprios objetos.

 

A desconstrução, de acordo com Melville, “surge como um certo compromisso com o fluxo e fluidez… ela divaga, circula, conecta, e desconecta.”6 Essa frase oferece uma descrição apropriada para a forma como Planets opera. Curitiba Planet é incapaz de realizar um círculo completo em torno de si mesma, deixando um espaço aberto que lembra a moldura quebrada no Ovo Linear de Lygia Clark (1958). Considerando que, na obra de Clark, a abertura sinalizava o espaço real derramando para dentro, na de Blasco o efeito é romper com a ilusão do “real” fotográfico. Em vez de unir os edifícios e de uma falsa coerência, nos deparamos com o suporte de madeira. Esta obra também desiste da pretensão do ilusionismo, ao apresentar vários blocos nas cores magenta, azul turquesa, e amarelo, colocados em intervalos aleatórios. Estes fazem lembrar o legado do Neoconcretismo na arte brasileira, gerando uma distinção instigante entre abstração e representação. New York Planet apresenta uma cidade amada e muito fotografada, bem como o lugar de residência do artista por mais de duas décadas. As impressionantes paredes de vidro dos arranha-céus próximos (o ponto de vista é o deck de observação do Rockefeller Center) contrastam com a base de madeira compensada assimétrica visível no centro e nas margens. O céu incrivelmente azul é pontuado por fantásticos desenhinhos, como que uma pixação aérea. Mudando constantemente nossa percepção entre a fotografia e seu suporte, entre arquitetura e arte, a série Planets de Blasco, tal como acontece com o resto de sua obra, envolve seus espectadores tanto esteticamente quanto conceitualmente. Através de meios visuais e espaciais, o artista consegue mudar a prática primariamente textual da desconstrução em direção à compreensão das imagens do mundo e sobre o mundo.

 

 

Sobre Tatiana Flores

 

Tatiana Flores é professora adjunta de História da Arte na Rutgers, Universidade Estadual de New Jersey. Uma especialista em arte moderna e contemporânea, ela publicou uma obra considerável sobre arte latino-americana e também opera como uma curadora independente. Ela é a autora de Vanguardas Revolucionárias do México: Do Estridentismo até ¡30-30! (Yale University Press, 2013)

 

 

Até 31 de maio.

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