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AGENDA CULTURAL

Costurar sentidos.

Agradeço a vida que teço enquanto o tempo a desfia.

Bianca Ramoneda(1), “Cadernos de costuras”

Bordado, tecido, pintura, colagem e poesia se misturam em Costurar Sentidos, exposição coletiva apresentada no segundo andar da Anita Schwartz Galeria de Arte, Gávea, Rio de Janeiro, RJ, que reúne obras têxteis e derivações de costura como ponto central de produção. A seleção, inicialmente baseada na escolha da técnica, uma vez definida, apontou novos pontos de convergência. São trabalhos permeados por motivos relacionados a construção e a afirmação de identidade, ao resgate e a reverência às memórias afetivas e a ressignificação de sentidos. Falam de questões sociais e temas sensíveis aos autores, ao mesmo tempo em que expressam as suas origens e o caminho percorrido ao longo da sua jornada pessoal e artística. Peças de roupa e pedaços de tecido são matéria-prima tal qual tinta para pintura na criação de Arthur Chaves. A convivência do artista com o universo da costura iniciou-se na infância. Quando criança, ele observava a mãe trabalhando na máquina de costura num quartinho em casa, repleto de roupas e tecidos armazenados. O interesse pela arte têxtil primeiro o levou a estudar design de moda, área em que atuou por um período, antes de migrar para as artes visuais. Hoje, desenvolve colagens têxteis, composições abstratas e grandes instalações. Dani Cavalier combina a linguagem da tecelagem com a da pintura nas suas pinturas sólidas, aproximando o dito universo popular da artesania com a erudição atribuída às belas artes. A artista trabalha com a concretude da matéria e desenvolve obras abstratas, compostas de pedaços de lycra tensionados sobre a estrutura de madeira do chassi. Como num código aberto ou numa partitura musical, a pintura sólida revela o seu processo de feitura: cada passo, cada escolha da trama pode ser lida. O que suscita perguntas sobre o próprio processo de criação, a escolha dos tecidos, a transformação deles em matéria-prima para a composição artística, os caminhos trançados e o tempo de produção. Dani Cavalier estuda diferentes técnicas de artesania brasileira, as quais opera dentro do trabalho. O compartilhamento de saberes, típico do artesanato popular, está ali incorporado e reverenciado. Textile, obra de Duda Moraes, incorpora o encontro de culturas Brasil e França que hoje convivem dentro da artista. Radicada em Bordeaux há oito anos e internacionalmente conhecida por suas pinturas multicoloridas, com fortes referências a luz e a natureza tropical exuberante do Rio de Janeiro, Duda encontrou nos tecidos a ponte de conexão que aproximou o seu processo de criativo do seu atual habitat. A série de trabalhos “Textile” é desenvolvida com materiais de descarte de lojas locais de estofamento. Tecidos nobres como o veludo e a seda, em tons mais invernosos, dão o toque francês aos seus jardins têxteis. Pensando em perspectivas de representação, Jeane Terra desenvolveu uma série de autorretratos. A artista traça um paralelo com o mundo contemporâneo tomado pelas selfies, onde cada vez mais o indivíduo celebra a autoimagem, moldando-a aos diferentes contextos. Presente na mostra está o seu autorretrato em “peles de tinta” costuradas, uma indagação à sua própria identidade e, também, uma investigação sobre os vestígios de seus ancestrais. Para Jeane somos todos uma amalgama das influências e das experiências vividas. Inevitável a alusão a ideia de colcha de retalhos. As diferentes cores da composição representam memórias fragmentadas que se misturam em suas nuances. Há na pintura seca uma cor mãe, uma cor condutora que está presente em todas as outras, chamada pela artista de cor matriz ou cor de condução. Cor que se transforma quando associada a outras, mas que ainda carrega os seus componentes de origem. Em Lagoa-mãe vemos uma reprodução em bordado do perfil da Lagoa Rodrigo de Freitas como era, possivelmente, no final do século XVIII ou XIX. A imagem de origem, garimpada na internet, não deixa ver muitos detalhes. A lagoa hoje é ainda maior, não sofreu aterros e os rios que nela deságuam não estão canalizados ou encobertos. Renato Bezerra de Mello, autor da obra e nascido em Pernambuco, alimenta especial apreço por esse lugar e por sua paisagem, que é para ele, desde a chegada ao Rio de Janeiro, ponto de equilíbrio. No container, localizado no terraço da galeria, apresentamos um vídeo de Rosana Palazyan, que tem como base a obra Rosa Daninha? – um livro objeto em tecido bordado, produzido pela artista, que cabe na palma da mão. Ao subverter a escala diminuta e acrescentar poeticamente elementos inesperados, o vídeo se transforma em obra autônoma. Assim como em outros trabalhos da artista do mesmo período, a obra amplia a reflexão sobre definições e rótulos que transformam seres humanos em daninhas, ao traçar um paralelo entre definições encontradas em livros de agronomia e frases usualmente relacionadas a pessoas que se encontram em situação de exclusão social. O gesto de folhear as páginas do livro real aparece no vídeo como uma passagem de tempo: Ora a Rosa surge linda e vencedora, e como num flashback, passo a passo, nasce e cresce no meio de plantas consideradas daninhas, como a Azedinha. Ora a Azedinha é quem aparece sozinha, como tivesse eliminado a Rosa. E finalmente, em imagens produzidas apenas para o vídeo, as duas convivem até que o vídeo (em loop) reinicie. Dentro desta poética, a artista apresenta ao espectador uma narrativa sem verdades ou repostas absolutas. Poemas em varal, assim a artista visual e performer Yolanda Freyre descreve a sua mais recente série de trabalhos em cambraia, que versam sobre existência e finitude, memórias e sentimentos. Sobre os tecidos, com tamanhos e rendas variadas, Yolanda transcreve poemas nascidos em diferentes momentos, muitos deles recitados em sonhos. Os versos são escritos como pintura, em tinta aquarela, e sugerem pela cor a expressão dos sentimentos “estendidos”, que ganham ainda um delicado alinhavo, em linha de bordar, superposto à aquarela. Ave em arribação é o título de um dos poemas apresentados e se refere ao atual momento de vida da artista, segunda ela o seu terceiro ato: Ave que está preste a levantar seu voo definitivo.

Cecília Fortes, Curadora

(1) Caderno de costuras / Bianca Ramoneda. Rio de Janeiro: Mapa Lab, 2022.

 

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