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AGENDA CULTURAL

Lourival Cuquinha: Crapulocracia

 

 

 

 

 

A Central Galeria, São Paulo, SP, apresenta em seus últimos dias de exibição, “Crapulocracia”, a primeira mostra individual de Lourival Cuquinha na galeria. A exposição é a terceira de uma trilogia de exposições do artista que vêm acompanhando os últimos capítulos políticos do país e a consequente derrocada do pacto democrático.

 

Lourival Cuquinha, Recife, 1975. Vive e trabalha em São Paulo. Multidisciplinar, estudou na UFPE (Recife, 1993-2002) onde frequentou cursos diversos como Engenharia Química, Filosofia, Direito e História. Foi reconhecido em diversas premiações e programas de residência como: Prêmio Funarte Conexão Circulação Artes Visuais (2017), Prêmio Marcantônio Vilaça (2012), Prêmio Brasil Contemporâneo – Fundação Bienal de São Paulo (2010), Artist Links – British Council (2009), entre outros. Suas exposições individuais incluem: Transição de Fase, Funarte (Belo Horizonte, 2018); O Trabalho Gira em Torno, MAMAM (Recife, 2015); Territórios e Capital: Extinções, MAM Rio (Rio de Janeiro, 2014); Capital: destruction-construction, PROGR Foundation (Bern, Suíça, 2012); Topografia Suada de Londres: Jack Pound Financial Art Project, Centro Cultural Correios (Recife, 2012). Entre as coletivas recentes, destacam-se: À Nordeste, Sesc 24 de Maio (São Paulo, 2019); Panorama da Arte Brasileira, MAM-SP (São Paulo, 2017 e 2011); Bienal Sur, Centro Cultural Parque de Espanha (Rosário, Argentina, 2017); 5o Prêmio Marcantônio Vilaça, MAC-USP (São Paulo, 2015). Sua obra está presente em importantes coleções públicas, como: CCSP (São Paulo), MAM-SP (São Paulo), MAR (Rio de Janeiro), MAMAM (Recife), entre outras.

 

Cuquinha e a disputa do simbólico

 

Pollyana Quintella

 

Lourival Cuquinha é amplamente reconhecido no cenário brasileiro por estressar as relações entre arte e política. Lourival Cuquinha é amplamente reconhecido no cenário brasileiro por estressar as relações entre arte e política. Do furto do parangolé de Hélio Oiticica, no início dos anos 2000, às icônicas bandeiras compostas de notas de dinheiro, o artista se dedica há mais de vinte anos a perscrutar as fantasias e as ficções sociais que rondam a prática artística, seus limites, validações e atribuições de valor, bem como as relações íntimas entre exercício político e dimensão simbólica. Crapulocracia, sua primeira mostra individual na Central Galeria, é a terceira de uma trilogia de exposições que vêm acompanhando os últimos capítulos políticos do país e a consequente derrocada do pacto democrático. A primeira delas, OrdeMha, foi realizada em 2016, em paralelo ao golpe exercido sobre o mandato da ex-presidenta Dilma Rousseff, enquanto a segunda, Dos meus comunistas cuido eu (Roberto Marinho), presenciou a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018. Todas elas, por meio de diferentes estratégias, buscam situar o trabalho do artista à luz desses acontecimentos.

 

No centro da exposição de 2016, uma grande lâmina rotativa, tal qual as placas de Petri – recipientes cilíndricos utilizados por cientistas para analisar microrganismos –, expunha o equivalente a um metro quadrado de lama tóxica da Vale despejada no Rio Doce, como se fosse possível encapsular a catástrofe. Se a lama cumpria o papel de presentificar o desastre e aproximar de nós o evento (tantas vezes reduzido a uma abstração narrativa em razão do bombardeio de notícias e informações), ela também instigava certo fascínio meditativo pela substância em movimento, pondo em tensão as relações entre estética e política ou entre frágeis dicotomias como ação e inação, atividade e passividade.

 

Desta vez, dois torniquetes atualizam o repertório das recentes tragédias brasileiras. Um exibe o petróleo que atingiu as praias do litoral nordestino em 2019, enquanto o outro expõe as cinzas das queimadas que se multiplicaram no território nacional em 2021, formando uma espécie de inventário das destruições que não cessam de nos atravessar. No Brasil do presente, não é exagero dizer que a realidade supera a fantasia; sobra delírio, mas falta imaginação. Lama, fogo, bolsa de colostomia, tudo soa como pura literalidade. Para que metáforas? Resta saber se ver as substâncias assim de perto será o suficiente para perturbar nossa anestesia.

 

O petróleo, material de interesse de Cuquinha há alguns anos, também está presente no neon que dá título à mostra – Crapulocracia. A palavra luminosa contaminada pelo combustível fóssil funciona como um marcador temporal do presente, em que as promessas históricas são suplantadas pela realidade pós-utópica e a imaginação coletiva fracassa continuamente em encontrar soluções para as crises em que estamos imersos, enquanto o país é governado por uma besta.

 

Cuquinha, por sua vez, não se restringe à visão curta e nublada de um presentismo encerrado no aqui-e-agora. Trânsitos entre diferentes tempos históricos situam as complexidades políticas em perspectivas mais amplas, como é o caso de Apólice do Apocalipse (2018-2021), iniciada em 2018. Naquela altura, o artista apresentou uma cômoda de vidro antiga contendo uma transcrição da carta de Pero Vaz de Caminha, considerada o primeiro documento escrito no Brasil. Pouco a pouco, a carta ia sendo carcomida por um conjunto de grilos vivos, o que fazia menção direta ao fenômeno da grilagem, cujo nome tem origem no fato de que esses insetos eram utilizados para forjar o envelhecimento de falsos documentos. À luz da ação do artista, a história do país figurava como um gesto inautêntico. Agora, a mesma carta é exposta depois dos efeitos da grilagem, simulando o próprio anacronismo. Afinal, não há nada assim de tão novo no nosso fim do mundo; talvez estejamos mais próximos de um disco arranhado que repete um evento farsesco à exaustão. Junto a isso, a presença de uma lanterna de luz negra permitirá que o público reconheça que a carta foi escrita sobre um papel-moeda, entrelaçando identidade nacional, capital e poder.

 

A relação direta com o dinheiro também está presente em Brasil Sumidouro (2013). Recibos das mais variadas compras realizadas com o cartão de crédito do artista dão forma aos mapas das cinco regiões do país. Trata-se de uma espécie de loteamento simbólico do Brasil a partir de gastos pessoais, nublando as fronteiras entre o público e o privado. Sumidouro – lugar por onde algo desaparece – refere-se ao fato de que os dados impressos em tais notinhas fotossensíveis estão fadados a se apagar com o tempo. Restará apenas a cor do papel, nos fazendo questionar os critérios arbitrários de atribuição de valor no meio da arte.

 

É a obra Vendo Direitos à Venda (2021), contudo, que situa as operações financeiras com mais radicalidade. O artista comprou, em setembro deste ano, 100 ações da Petrobras pelo valor total de R$ 2.493,00. Os interessados em adquirir a obra deverão responder a um breve questionário cuja finalidade é designar se são ou não cidadãos golpistas. Os “brasileiros não golpistas” poderão comprar o trabalho por R$ 5.099,00, valor referente ao preço que as ações alcançaram em maio de 2008, momento de alta da empresa, enquanto “estrangeiros ou brasileiros golpistas” só poderão adquirir o trabalho pelo dobro do preço, R$ 10.198,00. Ao instituir tais condições, Cuquinha desconstrói um suposto espaço de neutralidade garantido pelo capital na comercialização, além de implicar as consequências políticas e econômicas dos últimos anos no seio das ações culturais.

 

Ao longo de todo o percurso definido por Cuquinha, somos reiteradamente provocados: Qual papel resta à prática artística na construção de um imaginário político? Como fazer do campo simbólico um espaço de disputa? Quais as negociações entre sujeito, instituições de poder e os limites da legalidade? Não será possível responder essas perguntas, mas, assim como para Cuquinha, nos caberá sustentar o problema: cutucar, desmontar e revirar as fantasias.

 

 

 

 

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