Se os lugares importam, deslocar-se é se transformar – sem, no entanto, apagar os rastros do que já se foi. A arte, nesse contexto, é um campo privilegiado para apreender as camadas de tradução, opacidade, atrito e reinvenção que marcam o movimento de pessoas, formas e histórias. Foi com esse olhar que se iniciou a colaboração entre o Instituto Tomie Ohtake e o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM São Paulo), num momento em que a coleção do museu paulista se coloca em circulação pela cidade e enquanto o Instituto Tomie Ohtake preparava uma exposição dedicada à obra de Édouard Glissant. Logo começamos a conversar sobre o quanto a coleção do MAM São Paulo carrega marcas da demografia heterogênea do país e de sua maior metrópole; sobre como a história de nossas instituições é definida por trânsitos e mutações; e sobre como tanto modernidade quanto contemporaneidade estão imbuídas de legados de trocas e disputas entre territórios, linguagens e pessoas. Glissant usava a expressão aqui-lá para sublinhar que “aqueles que estão aqui vêm sempre de um “lá”, da vastidão do mundo”. Seu foco era afirmar que cada pessoa e comunidade carregam rastros de outras paisagens, línguas e culturas, e que por isso nenhum lugar é homogêneo ou pode ser compreendido como uma unidade coerente. Para o poeta, ao contrário do que alguns afirmam, a diversidade resultante dos movimentos entre territórios enriquece a experiência dos lugares, colocando-os em relação com todas as línguas e lugares do mundo. Partindo dessa premissa, a exposição propõe um exercício de escuta e aproximação, em que as obras da coleção do MAM são reunidas a partir do cruzamento de rastros – ora em ressonância, ora em desvio. Mais do que ilustrar deslocamentos, as obras os incorporam como matéria, gesto e pensamento.
A exposição se estrutura em dois núcleos, distribuídos em salas distintas, cada qual tensionando, à sua maneira, os modos de estar no mundo a partir da experiência do deslocamento e da relação com o outro. As obras presentes no espaço entre as salas introduzem algumas formas fundamentais dessa tensão: o texto, o mapa, e o isolamento. A primeira sala reúne obras marcadas por travessias físicas e simbólicas – migrações, diásporas, exílios, deslocamentos voluntários ou forçados, externos ou internos. Essas obras não apenas tematizam o movimento, mas o incorporam em suas matérias, gestos e construções formais. Elas apontam para as dinâmicas geopolíticas, afetivas e institucionais que moldam quem pode ou não circular, permanecer ou retornar. Aqui, o deslocar-se é compreendido como experiência complexa, feita de perdas, reinvenções e resistências.
A segunda sala se volta para as tensões entre corpo, território e identidade. Reúne obras que elaboram, por meio de imagens, superfícies e símbolos, processos de afirmação individual e coletiva – modos de inscrever a presença em contextos marcados por silenciamento, normatividade ou violência. Essas obras não se pretendem fixas ou ilustrativas: tratam de negociações sempre em curso, onde o corpo se torna lugar de disputa e de criação de sentido.
Cada uma dessas salas é orientada por uma obra que, em sua forma, já enuncia a instabilidade das fronteiras. Em uma, a multiplicidade de bandeiras de diferentes cidades brasileiras, de um mesmo estado, revela o caráter fragmentado e imaginativo dos signos cívicos que organizam o espaço nacional. Em outra, os retratos de pessoas em condição migrante – vendedores ambulantes que falam outras línguas, portam outros gestos, e vivem a precariedade de quem não pôde permanecer onde pertencia – tornam visível uma face cotidiana e estrutural da exclusão. Essas duas entradas não apenas introduzem os núcleos da exposição, mas também operam como dispositivos de leitura que colocam em relação o que se verá a seguir: deslocamentos e afirmações, mapas e corpos, simetrias e tensões, ausências e resistências. Ao caminhar entre as salas, o visitante é convidado a perceber como a arte – e as coleções – podem se tornar campos sensíveis, em que ecos do “lá” se inscrevem no “aqui”, e onde o entre-lugar se faz espaço de sentido.
Ana Roman, Cauê Alves, Gabriela Gotoda e Paulo Miyada, curadores.
Até 02 de novembro.